Eu detestei a ideia da viagem assim que meu pai a anunciou. Nunca gostei de viajar de carro. Era desconfortável, e, acima de tudo, entediante. Infelizmente, meu pai era do tipo de gente teimosa, que não muda de ideia fácil. Contra a minha vontade, organizei minhas coisas em uma mochila velha. Minha mãe continuava a reclamar que eu estava levando poucas coisas, e que a mochila não aguentaria tudo o que eu colocava nela.
                Nós passaríamos doze horas dentro de um carro em direção a uma pequena cidade, ao sul. Eu sequer me lembro do nome do lugar. O céu era cinza como concreto, e me dava calafrios apenas de olhar. Por isso, decidi usar as minhas botas. Ainda descalça, corri pelo quarto, para selecionar algum livro para levar comigo. Certifiquei-me de encher meu celular com músicas de que gostava, e de carrega-lo antes de partir. Meus pais tinham o péssimo hábito de ouvir músicas ruins e cantá-las ao mesmo tempo.
                A última coisa que fiz foi pegar um pacote de biscoitos e um guarda chuva. Entrei no carro de cara feia e tratei de abrir meu livro. Ingenuidade minha acreditar que conseguiria me concentrar.
- Por que está de cachecol? –Indagou minha mãe – Está se sentindo bem? Eu disse que você não devia sair à noite.
                Olhei para baixo, para o cachecol azul, de algodão, enrolado em meu pescoço. Estava frouxo, e cobria o colo de meu busto.
- É bonito. – Respondi.
- A garota está bem, pare de neuroses, Clarisse. – Disse meu pai.
                Uma discussão iniciou-se por causa disso. Eles falavam sobre mim e meus hábitos, como se eu não estivesse ali, no banco de trás, ouvindo-os perfeitamente. Em certo ponto, desisti da leitura e joguei o livro sobre o soalho do carro. Pluguei os fones em meus ouvidos e deitei-me sobre meu braço, o qual eu apoiei contra a porta do carro, formando um tipo de travesseiro. A música me distraiu, enquanto eu encarava a paisagem verdejante que passava como um filme pela minha janela. Meus olhos pesaram, e eu adormeci.
*
                O som de uma das portas do carro se fechando me acordou. Esfreguei as costas das mãos em meus olhos, preguiçosamente. Olhei ao redor, tentando me orientar. Era noite. No painel do carro, o relógio marcava uma da madrugada. Minha mãe abriu a porta ao meu lado, curvando-se para falar comigo.
- Vamos querida, passaremos a noite aqui, venha. – Orientou.
                Aqui? Aquilo não era um bom sinal.
                Sai do carro com as pernas meio bambas. O frio externo me atingiu, fazendo me tremer e abraçar-me, à procura de alento. Enfim ao lado de fora, olhei ao redor, apertando os olhos para tentar enxergar melhor. Estávamos em algum tipo de desvio, e havia uma casa grande à nossa frente. Ao olhar para trás pude ver a rodovia. Bosques sombrios, com árvores altas, se estendiam por todo o lugar, circundando a casa.
                O lugar era grande, com dois andares e estilo vitoriano. Era daninha crescia em suas bases, e eu não era capaz de identificar a cor das paredes externas.
- Onde estamos? –Indaguei.
- O GPS quebrou e tivemos que dar uma parada. Por sorte encontramos essa casa. Seu pai foi até lá, mas parece que está vazia. Com o GPS quebrado não podemos continuar, ao menos não em meio a essa escuridão. Passaremos a noite aqui. –Explicou minha mãe.
- Eu não acho que seja uma boa ideia. –Resmunguei – Por que não chamamos um guincho?
- Por que nosso carro não está quebrado! –Respondeu papai, caminhando até nós. Ele destrancou a mala do carro, e começou a retirar um pouco da bagagem. – E porque estamos sem sinal.
                Minha mãe caminhou até mim, passando os braços ao meu redor. O quão clichê era aquilo? Passar a noite em uma casa velha e abandonada, sem sinal de telefone.
- Vocês não assistem filmes? Casa velha abandonada significa: Vá embora se não quiser ter uma morte horrível. –Resmunguei.
- Isso é a vida real, Laura. Pare de besteiras, logo vai começar a chover.
- Podemos dormir no carro. –Retruquei.
                Papai apenas me encarou, revirando os olhos.
-Não custa nada tentar. –Disse.
- Vamos querida! – Orientou.
                Suspirei. Aquilo não me agradava nem um pouco, mas estava cansada demais para discutir. Estiquei o braço para dentro do carro e peguei minha mochila, jogando sua alça sobre meu ombro e fechando a porta do veículo em seguida. Segui minha mãe, ouvindo nossos pés esmagarem a terra úmida sob nossos pés. Papai ia à frente, com a lanterna do celular ligada, guiando-nos. Enfim alcançamos o alpendre da casa, onde subimos alguns degraus, antes que meu pai abrisse a velha porta de madeira.
                A casa estava úmida e cheirava a mofo. O odor era intoxicante e fazia minhas narinas coçarem. Olhei para cima, ouvindo o vento uivar contra a madeira no telhado escuro. O assoalho velho rangia a cada passo que dávamos. À nossa frente havia uma escadaria longa, que levava ao andar de cima. Ao lado esquerdo estava a cozinha, ao direito a sala de estar. Papai virou-se para nós.
- Eu vi um disjuntor lá atrás, vou ver se consigo alguma luz para nós. –Ele entregou o celular para minha mãe e saiu.
                Caminhei dentro da escuridão, observando os detalhes da casa. A única mobília que havia ali eram três sofás velhos, que formavam um “C”, na sala. As paredes estavam descascando, e provavelmente o aquecedor não estaria funcionando.
- Laura, eu vou ver se há água nas torneiras da cozinha. Volto em um instante. –Disse minha mãe.
                Olhei para trás e assenti. Ela saiu, caminhando apressada, e levando a única luz que havia ali. Saquei meu celular do bolso e acendi sua lanterna. Continuei caminhando, saindo do hall e adentrando a sala de estar, onde estavam os sofás. Não havia cortinas, e um dos vidros da janela norte estava quebrado. Eu usava a claridade da lanterna para me guiar, enquanto observava as paredes. Foi apenas quando ergui o facho de luz um pouco mais que notei a grande pintura, pendurada na parede em frente aos sofás.
                O retrato era grande, com as bordas comidas por cupins e a cor desbotada. Nele havia três figuras. Um homem velho, com a barba cheia e a feição séria, uma mulher elegante, com longos cabelos louros e cacheados, e uma garotinha, de cabelos compridos e lisos. Foi a disposição das pessoas no retrato que me chamou a atenção. O pai e a mãe olhavam para baixo, para a filha, com feições duras, como se a reprovassem por algo. A garota, no entanto, parecia me encarar diretamente.
                Andei para o lado, sem mover a vista dos olhos dela. Eles pareciam me acompanhar. Era um daqueles retratos em que, não importa onde você esteja, estará olhando para você. Ótimo. Um chiado chamou minha atenção.
- Temos água! –Gritou mamãe, de algum lugar distante.
- Ótimo! – Gritei em resposta, sem olhar para trás.
                No segundo seguinte a luz da sala se acendeu. Meu coração deu um salto, mas apenas por um segundo. Olhei para trás. Papai estava ali, com um sorriso satisfeito no rosto.
- E temos energia também. – Disse – Quem são os figurões? – Indagou, indicando o quadro à minha frente com um movimento de queixo.
                Olhei para trás, observando a figura novamente.
- Não sei. Gente estranha. –Respondi.
- E não somos todos?
- Pare de colocar essas ideias na cabeça dela, Richard. –Disse mamãe, entrando na sala – Vá buscar os cobertores no carro.
                Meu pai assentiu, retirando-se.
- Há um banheiro no fim do corredor. Vá aprontar-se para dormir. – Orientou Mamãe.
                Assenti.
                Caminhei até o fim do corredor, onde havia uma porta branca. Empurrei-a, com certa cautela. Deslizei a mão pela parede ao meu lado, até esbarrar no interruptor. Pressionei o pequeno botão, iluminando o cômodo.
                Era um banheiro simples. O assento ficava no canto, havia uma pia, com espelho acima, próximo à porta, e um chuveiro no canto mais distante. Ignorei o assento, virando-me para o espelho. As olheiras sob meus olhos eram arroxeadas, e eu estava pálida. Não que eu não fosse, mas parecia mais visível nesse lugar. Passei os dedos entre meus longos cabelos castanhos, desembaraçando-o.  Meu rosto era fino, e meus olhos quase negros. Eu era magra, e baixa. Liguei a torneira e juntei as mãos em concha, para pegar um pouco de água. Usei-a para lavar o rosto e o pescoço. Então me curvei e peguei minha escova e pasta de dentes. Algo naquele ritual de me preparar para dormir me acalmou.
*
                No final das contas acabei ficando com o sofá menor. Era a coisa mais lógica, já que meu pai tem quase um metro e noventa de altura, e eu apenas um e sessenta. O outro sofá parecia em melhores condições, por isso me apressei e deitei-me nesse, para que mamãe pudesse ter ao menos um pouco de conforto. Se é que isso era possível.
                Ela havia trago pães e frutas, e foi apenas o que comemos. Meu pai reclamou, mesmo depois de ter comido seis pães. Ele havia encontrado um pedaço de madeira para cobrir o buraco no vidro da janela, enquanto mamãe havia encontrado algumas velas, para nos aquecer, pois não havia aquecedor por aqui. Elas não fariam grande diferença, mas seria bom não ter que dormir no escuro total.
                Nós conversamos um pouco, depois que as luzes foram apagadas. Papai foi o primeiro a dormir, seguido de minha mãe. Eu, no entanto, estava agitada. O vento ao lado de fora fazia sons assustadores, e a falta de cortinas fazia com que sombras dançassem pelo teto. Decidi que seria uma boa ideia ouvir música, mas a bateria do meu celular estava baixa, e não havia tomadas por perto. Decidi ler.
                Peguei a mochila, no chão, ao lado do sofá, e comecei a vasculhar. O livro não estava ali. Foi quando me lembrei de que o havia largado no carro. O mais silenciosamente que pude, calcei minhas botas e caminhei até a porta de entrada. Ela fez um ruído alto quando a empurrei, mas não alto o bastante para acordar meus pais.
Corri em direção ao carro, abrindo a porta de trás assim que o alcancei. Procurei pelos bancos, sem sucesso. Acendi as luzes do teto, e continuei minha busca. Enfim o avistei, debaixo do banco do motorista. Curvei-me em direção a ele, pegando-o com suavidade. Com o livro em mãos, afastei-me e fechei a porta do automóvel. Virei-me de maneira corriqueira, para voltar a casa, mas congelei ao olhar direito.
No canto lateral direito da casa, havia a silhueta de uma figura humanoide, agachada. Ela se colocou de pé, revelando um corpo masculino, alto. Duas luzes esbranquiçadas eram seus olhos. Levei a mão à boca, prendendo um grito. O que era aquilo?
Era alto demais para ser um homem, e magro demais também. Com a respiração entrecortada, e os olhos vidrados, retirei a mão que cobria minha boca e a levei ao bolso de meu casaco. Saquei o celular e o ergui na altura dos olhos, desviei o olhar por apenas um segundo, enquanto localizava a lanterna.  Apertei o botão que a ligava, e ela se acendeu. Mas não havia mais nada ali. Eu mal podia respirar. Era como se meus pulmões houvessem murchado e o ar não conseguisse inflá-los. Meu estômago pesava com uma tonelada de medo que havia se instalado ali. Era como engolir uma bigorna, fria. Eu tinha de avisar meus pais. E se ele não estivesse sozinho?
Dei um passo para frente, decidida a correr de volta para dentro da casa. Antes que eu pudesse dar o segundo passo, a porta da frente bateu, com um ruído alto. Não pude conter meu grito.
- Não!! – Me desesperei.
                Tomei fôlego e corri de volta em direção a casa. Alcancei-a em um segundo, subindo os degraus depressa e levando a mão á maçaneta da porta.  Eu esperava alguma resistência, mas ela girou com facilidade. Irrompi porta adentro, sem sequer olhar para trás. A lanterna do celular ainda estava ligada, e me dirigi à sala de estar imediatamente.
                Meu mundo caiu quando notei os sofás vazios.
- Mãe! Pai! –Gritei a plenos pulmões.
                Os cobertores deles estavam no chão, mas não havia sinais de combate. Continuei a gritar, olhando ao redor, atordoada. Quando o facho de luz atingiu o retrato na parede, eu comecei a chorar. A figura estava vazia...
Continua...

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