imagem: we heart it

Eu não conheço você, você não me conhece. Você não sabe, por exemplo, que eu sou alérgica a alguns frutos do mar. Talvez você também sofra de algum tipo de alergia, ou não. Eu não sei, eu não te conheço. Mas sei que se você não tem problemas em comer frutos do mar, é difícil para você se colocar no meu lugar e decidir ir a um restaurante onde o camarão não seja tão fresco, mas que eu possa me alimentar com outras opções. Afinal, é complicado se colocar no lugar do outro, né? Mas pode ser mais fácil. É mais fácil quando a gente percebe que o outro nos afeta e é importante para esse todo do qual fazermos parte. 
Vou te dar mais um detalhe para te ajudar nesse processo: eu sei ler. Quer dizer, estou aqui combinando letras que formam palavras e palavras que formam frases carregadas de significado. Eu sei ler. Mas tem gente que não sabe. E esse detalhezinho limita a vida de quem não sabe ler de formas inimagináveis. Eu não preciso desaprender a ler para saber disso: eu vejo gente que não consegue ler o itinerário do ônibus. Eu penso nessas pessoas que não sabem ler e reconheço as inúmeras dificuldades que devem encontrar diariamente. Defendo o direito delas de serem alfabetizadas. Empenharia toda a minha energia nisso, se preciso fosse.
Posso dar outro exemplo: eu não sou negra, digo, minha pele é amarelada, um tanto quanto desfavorecida de melanina. Eu não chamo atenção quando passo e nem me destaco em uma multidão pelo tom da minha pele. Mas eu vejo. Eu vejo o jeito que as pessoas olham quando ando por aí com meus amigos negros. Aliás, elas olham. Eu vejo que basta uma pessoa negra, vestida de forma mais informal, entrar no ônibus e pronto: os amarelos começam a se remexer irrequietos e guardar seus pertences. Esse é um dos pormenores, os outros tantos eu não conheço, simplesmente porque eu não sou negra. Mas eu olho para as pessoas negras e as reconheço como, também, parte do que sou. Parte de mim. Parte do todo do qual faço parte. E, mesmo nunca tendo ouvido uma piadinha racista referida à mim, eu defendo os direitos , as honrarias e o respeito que essas pessoas merecem. Como eu, como você, como seu futuro filho, como o seu primo.  Ver isso não faz de mim a Madre Teresa de Calcutá, não se engane. Só faz de mim alguém que já percebeu a participação de cada um, mesmo que indiretamente, em minha história (pare de jogar lixo no chão) e a minha participação nas histórias alheias, também.
Eu poderia citar aqui uma infinidade de características que não tenho, uma infinidade de particularidades que eu não conheço, um mar de dificuldades que não enfrento. Poderia citar, também, a odisséia da minha vida. E você poderia se identificar, ou não. Mas eu prefiro resumir: precisamos do outro. Eu preciso de você. Pode ser que não seja tão direto assim, eu não preciso que você busque um copo de água para mim nesse exato momento. Mas preciso, por exemplo, que você, por favor, preserve a quantidade de água potável existente no Planeta. Eu preciso, minimamente, que você preserve os nossos recursos naturais. Nossos. Meus, seus, do cara que dorme no chão da rodoviária e do deputado. Entendeu? Somos um todo. Eu sei ler, você sabe ler, mas tem gente que não sabe e cabe a mim, a você e à pessoa que não sabe ler lutarmos por isso. A todos nós. Eu não sei se você é negro, mas cabe a mim, a você, ao índio, ao pardo e ao negro essa luta, também. É uma luta pela humanidade. 
Parece utópico? Tudo bem, vamos lá. Sabe aquela embalagem de comida que você jogou no meio da rua, no laguinho, na cachoeira, no mar? Pois bem, volte lá, pegue-a e descarte no lixo. É isso. É construir. E pensar desde o papel de bala que se joga na estrada até para quem daremos os nossos votos na próxima eleição. É pensar no macro. E nem precisa andar de braços dados com o vizinho que você nunca falou na vida, basta ter em mente que ele é seu coautor: vocês estão escrevendo juntos. Como você vai querer que seja escrita a sua parte na história da humanidade?
Depois de tudo isso, talvez, você me conheça um pouquinho. Mas eu não te conheço. Mesmo assim, estando onde estiver, eu garanto a você que empenharia toda a minha energia por você, se preciso fosse. Eu não preciso conhecer você para lutar pelo seu direito de viver, pelo seu direito de igualitariamente viver. Eu não preciso estar na sua pele para saber quando posso ser útil a você. Daqui já posso ver que de mãos dadas podemos crescer.

Ane Karoline

4 Comentários

  1. Ane, seus textos são ótimos, mas esse... Esse é fodástico!

    http://www.leiturasecomidinhas.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah, Bia, obrigada! Obrigada pela visita e pelo carinho. É sempre um prazer ter sua opinião aqui, afinal, é sempre bom ter o outro em consideração, né?

      Excluir

O tempo é maior presente que podemos dar à alguém: obrigada pelo seu. As palavras são afeto derretido, que tal deixar as suas? (Caso tenha um site, para que possamos presenteá-lo com nosso tempo,divulgue-o aqui). Forte Abraço.