Adriana faleceu aos vinte e oito anos. Em outubro completaríamos o nosso terceiro ano casados. Três dias antes de sofrer uma parada cardíaca, estávamos deitados no sofá da sala e, entre uma gargalhada e outra durante um programa de piadas repetidas que passava na televisão, ela disse:
– Bento?
– Eu sei, essa daí passou semana passada. Mas nunca perde a graça, né?!
–  Quero que me prometa uma coisa.
Abaixei o volume da televisão e esperei.
– Quero que seja sempre assim. Se coincidir do meu aniversário de oitenta anos ser em um dia de domingo, eu quero comemorar desse jeitinho aqui, fazendo o que fazemos em domingos que não são o meu aniversário. Às três da tarde em ponto, corremos para a sala, assistimos o mesmo programa, com as mesmas piadas e...
– Não dava para escolher um programa melhor para assistirmos até o fim de nossas vidas? – Sorri, provocando-a. Ela inclinou a cabeça para a direita como uma criança insistente que tem seus doces negados – Tudo bem, tudo bem. É isso que você quer que eu prometa?
– Eu quero que você me prometa a simplicidade, Bento. Quero continuar encontrando a felicidade nas coisas mais simples e, como você é o meu par, quero que o faça também.
Três dias depois, estando ambos em seus horários de trabalho, nos dois extremos da cidade, Adriana me liga e não diz oi. Chora. Tentei acalma-la, até que ela disse ofegante:
–  O meu coração está pegando fogo, aqui, dentro de mim. O lado esquerdo do peito. Dói muito.
Antes que eu entendesse, ouvi vozes apreensivas do outro lado da linha, até que um bombeiro da empresa em que ela trabalhava pegou o telefone e disse:
– É Bento, o seu nome? Mantenha a calma. Estamos levando-a para o hospital. Ela pediu para você tentar encontra-la, pediu também que tentasse não se preocupar.
Corri. Peguei o carro. E o trânsito parado. Parado. Eu olhava o relógio sessenta e uma vezes por minuto. Chorei. Choro doído. O que ela faria se estivesse aqui? Iniciei um monólogo em voz alta. Está tudo bem, Bento. Está tudo bem. Vamos achar graça disso depois. Você precisa estar calmo para tranquiliza-la. Respirei. Recitei o nosso poema preferido: “O amor bate na porta/ o amor bate na aorta/ fui abrir e me constipei/ cardíaco e melancólico (...)”. Cardíaco. Ela não vai morrer. Ela não vai morrer. O sinal abriu.
Dois bombeiros, quatro enfermeiras e uma médica de cabelos grisalhos olhavam com pena para mim: um homem com um metro e oitenta de altura, de terno, gravata e rosto vermelho de chorar.
– Onde está a Adriana? Qual é o número do corredor? Ela é a minha esposa. Eu preciso vê-la, sei que ela se acalmará ao me ver. Eu preciso me acalmar também. Fiquei preocupado quando ela me ligou chorando. Nunca a vi chorar assim. Mesmo. Em todos esses anos. Ela sentiu muita dor? Acredita que ela nunca me diz quando está doente? Tem mania de dizer que é inabalável. Ela brinca, sabe?! Mas ela vai ver só: a partir de hoje vamos prestar mais atenção na saúde. Eu vou traze-la ao hospital sempre que precisar, mesmo que eu precise carrega-la no colo. A mãe dela fazia assim quando ela era criança. Nunca gostou de hospital. Mas quem é que gosta?
Silêncio e olhos assustados.
– Ela está bem, não está?! Será que alguém pode me informar o número do corredor?
– Então você é o Bento? Bonito nome. É o nome do meu filho... – A médica introduziu, tentando amenizar o que falaria em seguida. – Bento, a sua esposa sofreu uma parada cardíaca e não resistiu.
Lembro-me de sentir uma dor no peito tão forte que acreditei ser o próximo a sofrer uma parada cardíaca. Olhei calado para a médica esperando que alguém entre aquelas sete pessoas - ou entre as mais de sete bilhões que existem no mundo, fizesse algo. Eu tive certeza que alguém a traria de volta.
Os sete dias que se passaram foram, provavelmente, os mais intensos da minha existência. Teve grito e silêncio. Dentro e fora de mim. Eu queria respostas. Elas não vieram.
Existe uma teoria que diz que as vozes das pessoas que amamos ficam gravadas em alguma parte do nosso cérebro, independente de passarmos dez anos sem ouvi-las, com um pequeno esforço lembraremos o timbre exato da voz de cada uma delas. Isso nunca foi tão torturante. Durante os dias de luto, o riso e a voz de Adriana ecoavam na minha cabeça.
“Bento? (...) Quero que me prometa uma coisa.” “A simplicidade, Bento!”
Shakespeare afirmou que há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar a nossa vã filosofia. Provavelmente, uma dessas coisas é que – apesar da dor pulsante que as pessoas deixam quando partem, ninguém quer ser lembrado com tristeza. Falecendo aos vinte e oito, Adriana nunca saberá se o seu aniversário de oitenta anos será em um domingo e eu nunca poderei comemorar com ela em frente à televisão, três da tarde em ponto; mas eu decidi, no sétimo dia sem ela, que eu cumpriria a promessa por ela proposta enquanto eu tivesse vida. Encontrar a felicidade nas coisas simples. Era a maneira mais eficaz de senti-la viva e perto de mim.
Se hoje consigo escrever com clareza sobre como perdi a mulher mais bonita que eu conheci, é porque se passaram trinta anos desde o falecimento de Adriana. A promessa virou parte da rotina: danço sozinho, como um bom velho que já sou. Acordo cedo para ver o nascer do Sol e gosto de imaginar que ela está vendo, de algum lugar. Ser feliz com o mínimo. Esses dias comprei um livro de piadas por três reais na banca de revistas. Eu vou à praça em que nos conhecemos sempre que me sinto sufocado por tudo que aconteceu. Sempre ajuda. Esses dias a ajuda veio através de uma pequena menina de cabelos loiros:
– Mãe, por que é que o céu é azul?
– Porque sim.
–  Azul é a cor preferida de Deus?
–  Clara, a gente não pode pensar muito nisso. Se não, enlouquece.

Então o segredo é não pensar muito nos porquês. Caminhei de volta para casa. Era domingo, duas e quarenta. Ás três em ponto eu tinha um compromisso. 

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