O tempo é caprichoso. Me parece que tudo tem um tempo certo, um tempo próprio, um tempo outro que não o que é conhecido ou esperado. Me parece que, além de dar o melhor de si, não há muito pelo que correr, não há razão para perseguir o que quer que seja; o tempo é caprichado, desenhado, feito para acontecer da melhor forma possível. Afora as vezes em que somos ludibriados, ou que ludibriamos a nós mesmos, tudo tem tempo certo para acontecer. Paciência.

Tanto discorro sobre o tempo porque sou apressada, mas tenho percebido que a pressa só me prende. Este ano muito li sobre tempo e, de alguma forma, certo tanto aprendi. Não sem razão, com carinho, separei os dez livros que mais me disseram, que mais conversaram comigo esse ano. Nove deles foram publicados em anos anteriores, mas acabaram me ensinando exatamente por isso, por serem atemporais. Afinal, não temos sempre que ser uma novidade, certo? 

1- Um sopro de vida - Clarice Lispector
Eu poderia escrever livros sobre o quanto Lispector conversa comigo através de seus escritos e, ainda assim, jamais conseguiria descrever a força com a qual este livro me alcançou. É uma narrativa construída em torno da construção da escrita: escritor e personagem falam. A autora construiu um personagem escritor que, além de falar em terceira pessoa sobre sua personagem fictícia, dá espaço para que a personagem fale de si mesma. Existe uma grande metáfora sobre criação, criador e criatura - além de ser um livro para a vida, recomendo fortemente para quem gosta de escrever. 

2- As meninas - Lygia Fagundes Telles
Posso dizer sem medo e sem vergonha que antes de ler os livros da autora, eu ainda não havia compreendido a infinidade de possibilidades literárias; ainda não havia compreendido como uma obra literária pode ser, ao mesmo tempo, uma obra sociológica e política. Em, "As Meninas", Telles monta, através de narrativas cruzadas de três moças jovens comuns, um retrato político da resistência contra o regime militar no Brasil. É um livro, ao mesmo tempo, sensível, forte e crítico. 

3- Outros jeitos de usar a boca - Rupi Kaur
Quando comecei a tomar gosto pela leitura, lá com meus 10 anos de idade, lembro que gostava muito de ler poemas; ainda que não os compreendesse muito bem, passava horas lendo os mesmos poemas. Entretanto, quando me perguntavam sobre poetas, eu sempre mencionava Cecília Meireles e Mário de Andrade; até agora. Há um tempo tenho visto frases soltas e isoladas do livro "Outros Jeitos de usar a boca" (em inglês, "Milk and honey") da poeta Rupi Kaur, mas somente em julho deste ano (por ter recebido de presente de aniversário) pude ler o livro completo. Há muito o que discutir e refletir na obra de Kaur, mas já adianto que recomendo fortemente o livro. A leitura muito me encaminhou em um auto descobrimento de minha feminilidade e na descoberta do amor próprio - apesar de não ser um livro de auto-ajuda. 


4- The bluest eye - Toni Morrison
Aqui, novamente, retomo a reflexão sobre o tempo: um livro publicado em 1970 e que, só agora, o descobri. Na verdade, só descobri essa escritora esplendorosa que é Toni Morrison este ano. Um livro extremamente sensível e, ouso dizer, necessário; traz assuntos essenciais, dos quais aqui destaco o racismo. 

"eu foquei, então, em como uma coisa tão grotesca quanto a demonização de uma raça inteira poderia fazer raízes no interior do membro mais delicado da sociedade: uma criança."


5- Northanger Abbey - Jane Austen
Alguns diriam que sou tendenciosa ao falar de Jane Austen, pois tenho um apreço genuíno pelas obras da autora. Entretanto, apenas este ano pude completar todas as minhas leituras dos romances de Austen, sendo, então, o último deles "A abadia de Northanger". Neste livro, de forma mais intensa que nos lidos anteriormente, a ironia e o senso crítico social da autora se fazem presentes. A trajetória da heroína é muito bem traçada e, tratando-se de uma moça pobre que, enfim, tem a oportunidade de conhecer a sociedade, é uma narrativa muito divertida. 

"Mas quando uma moça jovem tem que ser uma heroína, a perversidade de quarenta famílias ao seu redor, não pode impedí-la. Algo há de acontecer para colocar um herói no caminho dela."


6- Crime e Castigo - Dostoiévski
Apesar de se tratar de um clássico, publicado em 1866, também só tive acesso a esse livro este ano. E que sorte a minha! A graça e sagacidade com que escreve Dostoiévski se abrilhantam nesta narrativa de forma que, apesar de ser um livro extenso, em momento algum chega a ser cansativo. Sem querer estragar a surpresa dos possíveis leitores, me contento em dizer que, além de ser um livro excelente para distração, é uma reflexão e crítica social atemporal.
 

7- Gente Pobre  - Dostoiévski
O primeiro livro escrito pelo autor, nada perde em qualidade para Crime e Castigo. Para quem não gosta de ler livros muito extensos, essa é minha recomendação. É um livro interessantíssimo, curto e todo escrito em cartas - a narrativa é expressa através da troca de cartas entre os personagens principais. 

8- Sombras de reis barbudos - José J. Veiga
Esse vai especialmente para quem gosta de distopias. Além de ser um livro curto, gostoso de ler e divertido, ainda é uma super crítica social expressa através da narrativa contada por um menino. Apesar de, assim como Lygia Fagundes Telles, Veiga ter escrito em meados do período ditatorial brasileiro, o livro é atemporal. 


9 - Veracidade - Isabella de Andrade
Curto, um sopro, um suspiro. Um dos livros mais sensíveis e sensoriais que já tive o prazer de ler. Caso queira mais detalhes, eu já fiz resenha dele aqui no blog, neste LINK

10- Trem bala - Martha Medeiros
Do ano passado para cá, tenho lido bastante Martha Medeiros e, até então, achei que ela fosse uma excelente cronista, isso porque eu não a tinha lido como romancista. É um romance sobre perda, sobre finais e recomeços. Me doeu ler, mas aprendi um bocado. 

E aí, bora ler?

Com amor, 
Ane Karoline




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A gente tem tanto medo de estar devendo, tanto medo de ser cobrado pelo que fez e deixou de fazer, que quando, finalmente, decide fazer alguma coisa entra em colapso e começa a se enfiar em problema. Isso é teoria minha, não tem base científica, ela iria adorar. Formulei isso enquanto conferia pela vigésima vez no GPS o caminho que deveria tomar e vi um cara com uma lanterna sinalizando para o acostamento. Não um cara qualquer com uma lanterna qualquer, era um policial na verdade. Porra. Habilitação vencida. Antes de abrir o porta luvas, lembrei que pedi o Júnior para limpar o carro e ele tirou os documentos de lá. Porra. Fui parando, desesperado, nem desliguei o GPS e só me lembrei dele quando ouvi “recalculando rota”. Abaixando o vidro, olhei para as minhas bermudas sujas de molho do sanduíche e me lembrei da última mensagem de ano novo dela “Que você tenha o melhor ano da sua vida, mesmo que você seja um mentiroso”. Certo.

- Boa noite. - fui logo tentando agilizar o processo com o meio metro de policial que me abordava.
- Vamos descobrir agora, ligue a luz interna, por favor. Documentação em mãos.
- Esqueci em casa.
- Onde é que o senhor mora e aonde está indo a essa hora?
- Eu moro duas quadras para trás, vim comprar um sanduíche. – apontei para as bermudas sujas de molho – vim de pijama mesmo, acabei até me sujando.
- E porque o senhor pegou essa via? - Ele me olhou desconfiado. Mentiroso filho da puta, ele deveria estar pensando. Era o mesmo jeito que ela me olhava quando me questionava sobre nós, parece que me lia: mentiroso. Minto. Se for para me salvar, minto. Minto até se for para evitar a fadiga, como era com ela.
- Eu ia pegar o próximo retorno, é mais iluminado e ali embaixo está um fumaceiro desgraçado.
- Desce do carro, por favor. – ele se afastou da porta para que eu a abrisse e se alongou olhando ao redor preguiçosamente. Quando desci, tirei o celular do suporte que ficava acoplado ao duto do ar para que, por via das dúvidas, ele não visse o GPS. Ele deu uma boa olhada no carro, perguntou sobre porte de armas e me deixou ir. Se foi sorte ou azar é que eu não sei. Não sei o que eu fui procurar quando saí de casa, não sei o que eu estava procurando quando fui falar com ela pela primeira vez, mas amaldiçoo as duas vezes: continuei sem encontrar.

Depois de demorar vinte e três minutos dirigindo na velocidade da via, estacionei porcamente na garagem de casa, dei uma checada no celular e vi que o Maurício estava online, mandei uma mensagem convidando para jogar em casa na sexta, para testar. Ele respondeu rápido e eu acabei contando por alto o que tinha acontecido, longos minutos de espera se passaram antes que ele respondesse “liga para ela” e eu liguei. Liguei no impulso, coisa que não era muito minha, ela que era toda impulsiva, toda cheia das maluquices de quem não pode esperar, não pode ponderar e age de forma passional. Três toques. A voz dela era sonolenta, grogue “alô?”. Eu não disse nada, desliguei e disse para o Maurício que não liguei, que a ideia era ridícula. Madrugada de um domingo para segunda, imagina só se eu iria ligar para ela, e se o tal vendedor de seguros atendesse? Certo, ela não costumava ser do tipo que levava um cara para dormir na casa dela, mas e se agora ela fosse? Como é que eu tinha chegado a esse ponto, não sei; tão pouco saberia dizer se era adrenalina, sono ou as cervejas que havia tomado na tarde do domingo. Tudo que sabia era que o tal vendedor de seguros não atendeu o telefone dela e não ligou de volta perguntando quem era; havia uma chance de eles não estarem dormindo juntos e, de repente, isso me pareceu vital: descobrir se ela estaria dormindo com ele, descobrir se ela pintava quadros dele nu com aquele rosto roliço dele, descobrir se eles dividiam a cama e sabe-se lá o quê mais dividiam.

A coisa de pedir conselho para o Maurício era essa: ele não tem paciência e te joga logo no meio do caos. Me mandou procurá-la e, mesmo sem admitir isso para ele, eu fui sem hesitar; como se só precisasse de um cachorro de rua para me olhar como confirmação. Na hora não deu nada, ela dormiu, mas e depois? E se ela ligasse de volta? Eu ia ter que mentir de novo, que diferença isso faria à essa altura? Demorei vinte minutos, ainda dentro do carro, sujo e com frio feito um vagabundo, para conseguir decidir que, caso ela ligasse, eu diria que liguei sem querer, que esbarrei no celular, aliás, que o celular estava no bolso, eu, no bar, esbarrei no celular e nem percebi. No minuto seguinte, decidi como descobriria se estavam juntos ou não; era só isso, prometi para mim mesmo, só descobriria e depois a mandaria para o quinto dos infernos de onde ela nunca deveria ter saído.
Caminhando para dentro de casa, procurei novamente o perfil do vendedor de seguros, encontrei o telefone, abri o aplicativo de mensagens e digitei o que eu achei que seria o atestado de óbito dela dentro de mim “Tenho interesse em fazer um seguro. Podemos nos encontrar amanhã?”

Ane Karoline


Existem muitas definições de amor, existem muitas formas de demonstrar amor; não raramente, as definições e demonstrações divergem entre si, tornando o processo de amar turbulento. Há quem diga que por amor tudo é possível, que o amor tudo suporta, o amor tudo arrisca, o amor tudo perdoa, mas será que por amor um herói pode se tornar vilão? 

Sobre este conflito escreve Amanda Nunes em seu romance 60 horas. Um romance repleto de aventuras, desventuras, rupturas e reviravoltas, no qual um sargento da polícia militar brasileira (Hudson) vê-se coagido a passar por cima de sua boa índole na tentativa de salvar o amor de sua vida (Gabriela).  Após acordar de uma noitada da qual não se recorda com clareza, Hudson percebe a ausência inesperada de sua esposa; enquanto busca por sua esposa em casa, ele percebe uma dor inexplicada na nuca e, em seguida, encontra sua emprega em uma situação na qual ele jamais esperaria.  A partir de então, Hudson entra em uma busca desenfreada para salvar a vida de sua esposa e a sua própria. 


O livro 60 horas é repleto de reviravoltas e recheado com muita ação, as descrições detalhadas são capazes de criar cenários específicos na mente do leitor de forma a envolvê-lo nos acontecimentos descritos. Por conta da quantidade de acontecimentos (a maioria inesperados), o livro consegue ser interessante para diferentes públicos: aborda suspense, perseguição policial, ficção científica e romance. Ainda assim, apesar de conter violência e muita perseguição, o livro é característico para quem gosta de romances envolvendo paixões viscerais; Hudson é implacável em função de seu amor por Gabriela e, além disso, há vários momentos de flashbacks apaixonados na narrativa. 

Para além das questões de estrutura da narrativa, 60 horas é um livro que, ainda que sutilmente, aborda questões importantes das diferentes esferas sociais brasileiras; entre elas, o tráfico de drogas e a corrupção policial. O romance foi planejado e escrito de forma a evidenciar questões emocionais mas, ainda assim, acaba por notabilizar a problemática do financiamento e controle do tráfico de drogas nas grandes metrópoles brasileiras - inegavelmente, muitas vezes, apoiado pela polícia em troca de propinas - como retratado, por exemplo, nos filmes Tropa de Elite.

Para mim, alguém que lê mais distopias e contos claricianos, o livro foi um desafio e uma forma de abertura a novos horizontes - entre eles, à nova literatura brasileira que aborda, inclusive, realidades periféricas. Muito me entreteu a leitura do romance, me senti correndo uma maratona com tantas reviravoltas e aventuras, e considero o arco do herói bem construído pela autora: um personagem de boa índole que acaba por cometer crimes, ainda que heróicos, e, sob penas, consegue resgatar sua integridade - ainda que afetada. Aos amantes de aventuras, ação, suspense e narrativas policiais, a leitura de 60 horas está muito bem recomendada!

INFORMAÇÕES SOBRE O LIVRO:
autora: Amanda Nunes 
editora: Autografia
ano: 2015
minha nota: 8
LINK DO EBOOK: https://www.amazon.com.br/dp/B01MQY7GVP

Contato da autora:
email: ac.nunes@outlook.com.br
instagram: @a.c.nunes

Com amor, Ane Karoline

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Imagine uma pessoa. Uma pessoa cheia de sonhos, desejos, histórias, amigos, saudades, medos, qualidades e defeitos. Imagine uma pessoa com um coração que bombeia sangue para o corpo, uma pessoa que precisa de oxigênio para sobreviver. Imagine uma pessoa qualquer, uma pessoa única, uma pessoa como você. Agora, imagine essa pessoa presa em um limbo, aprisionada em um labirinto sem saber o que está acontecendo; enclausurada e confusa. Se não sabe o que está acontecendo e, pior, acha que esse labirinto é amor, não tem a mínima chance de sair, certo? Pois bem, vamos encontrar este caminho para entender que amor não aprisiona. 

Com o desenvolvimento das redes sociais, aceleração diária da rotina, efemeridade de tudo, a vida humana tem sido transformada de diversas maneiras; assim também tem acontecido com as relações. Não raramente, paixões são medidas por corações no Instagram e likes no facebook e, nessa tendência, palavras como GHOSTING e BENCHING têm entrado no vocabulário popular, dando nome a práticas covardes utilizadas como forma de manipulação há algum tempo. O que são, então? E o que tem a ver com labirinto? Vejamos.

Você já esteve em um relacionamento amoroso com alguém e sentiu como se a pessoa não estivesse tão comprometida como você? Já chegou a se perguntar por que vocês chegam a ter ótimas conversas online, mas repentinamente a pessoa some por semanas? Se sim, você pode ter concluído, finalmente, que a pessoa não estava interessada e decidido encerrar o relacionamento, certo? Mas, por acaso, quando o fez, você recebeu repentinas investidas, mensagens legais do ser humano em questão e, então, entrou em um estado de confusão mental sobre o interesse ou desinteresse? Se sim, receio dizer, você está sofrendo benching - expressão do inglês que pode ser, literalmente, traduzida como "colocar na reserva" - ou seja, você está sendo colocado na reserva para possíveis contatos futuros. 

É bem verdade que as pessoas podem acabar se envolvendo em vários tipos de joguinhos amorosos, e, para sermos francos, todos são jogadores de tempos em tempos. Entre esses jogos, alguns são menos nocivos que outros, uns intencionais, outros não; sendo benching, um nocivo o suficiente para 
atormentar bastante a vida de alguém. Diferentemente de ghosting - quando a pessoa simplesmente some e abandona a outra pessoa envolvida na relação;  benching, raramente chega a acontecer em um relacionamento real, ao invés disso, o manipulador da relação cerca a pessoa "posta em reserva" com mensagens espirituosas de tempos em tempos, aparições simpáticas ou convites que nunca se materializarão. Para psicólogos, em entrevista ao The New York Times, esse tipo de relacionamento é danoso pois coloca  a pessoa manipulada em uma situação de constante espera, instigada pela curiosidade e confusão mental; arruinando, assim, possíveis relacionamentos e, até mesmo, a autoconfiança. 

De acordo com os pesquisadores do site telegraph.com,  as pessoas adeptas desse tipo de manipulação, o fazem para manter suas opções de relacionamento em aberto - podem, sim, ter algum interesse na pessoa manipulada, mas não o suficiente para ter algum tipo de relacionamento real. A situação acaba se tornando um infinito ciclo de frustração no qual toda a incerteza toma conta da mente e o manipulado começa a sentir-se perturbado, louco. 

Ainda na pesquisa apresentada no telegraph.com, uma entrevistada, revelando que praticava benching, disse "Eu não tinha a intenção de orbitar ao redor da pessoa. Eu não conseguia decidir se chegaríamos a algum lugar ou não. Não me incomodava em nada iniciar uma conversa quando me sentia entediada e, ao mesmo tempo, era uma massagem agradável no meu ego saber que sempre havia esse alguém disponível para me dar atenção especial".

Como saber se você está sendo vítima de Benching:

1. Parece real
    Quando vocês se vêem, é intenso. Há uma intimidade incrível; Você se sente como a única pessoa no mundo. O "bencher" está lhe dando esperança ao fazer parecer que o relacionamento poderia realmente ir a algum lugar - mas não irá. Nunca irá mais longe do que aquelas noites mágicas aleatórias e os longos, longos e longos dias no meio, enquanto você espera uma resposta para a sua mensagem de "me diverti muito ontem!" logo após o encontro. Isso também serve para conversas virtuais.

2. Aparições e desaparições repentinas
      Quem pratica benching, tende a desaparecer logo após demonstrar interesse e a reaparecer, sorrateiramente, depois de algum tempo sem dar noticias.

3. Você tem colocado sua vida amorosa de lado - à espera desta certa pessoa
      Você pode começar realmente a se sentir mal por passar rapidamente em um aplicativo de namoro ou sair com outra pessoa. Mesmo que você não tenha visto o seu manipulador por meses, você prefere continuar esperando pelo dia em que ele/a perceberá que gosta de você o suficiente para ficar.

4. Falta de tempo para você
Se você estiver sofrendo benching, a pessoa vai alternar entre momentos de sutis investidas (sem nunca deixar muito claro o que realmente quer) e longos períodos nos quais não tem tempo para você.

5. Você pensa que está enlouquecendo
Em geral, quando o ciclo de benching dura muito tempo, a pessoa manipulada começa a questionar sua sanidade e sente-se extremamente confusa chegando, até mesmo, a acreditar que o relacionamento está predestinado a acontecer - pela frequência das aparições repentinas.

A quem sofre benching: lembre-se que não há ninguém mais apropriado para decidir seus caminhos que você; caso alguém te faça esquecer quem é, esse alguém não é certo para você.

A quem pratica benching: é certo que é completamente normal sentir-se confuso a respeito do real interesse em alguém, a respeito das próprias intenções em um relacionamento, mas quando essa dúvida torna-se um ciclo capaz de aprisionar outra pessoa - sobretudo quando percebe-se que a outra pessoa está realmente envolvida - é hora de fazer uma escolha e expor as reais intenções para dar ao outro a chance de escolher entre entrar em um labirinto ou tomar outro rumo.

com amor,
Ane Karoline

Fontes: https://hellogiggles.com/love-sex/dating/6-signs-someone-is-benching-you-instead-of-full-on-ghosting/

http://www.telegraph.co.uk/women/life/benching-the-dating-trend-that-could-ruin-your-love-life/


imagem: stocksnap.com


Uma neblina desgraçada me cegou logo na esquina da minha casa quando tive a ideia ridícula de sair de casa na noite da minha sarjeta. Depois vi que era fumaça e fechei a entrada de ar externo do ar-condicionado para não me engasgar com tanta fumaça, já me bastava estar engasgado comigo mesmo; engasgado com minha covardia. Se eu dissesse que já havia tomado uma decisão quando saí de casa, estaria mentindo: saí impulsionado pela raiva, sem destino, sem rumo certo; mas vontade eu tinha. Uma vontade velha, moradora do meu peito desde o dia em que ela me chamou de “meu bem” pela primeira vez – queria que ela sumisse, sempre quis que ela desaparecesse, que eu nunca a tivesse conhecido. Fiquei pensando foi que se batesse o carro, se eu morresse ali naquela fumaça, ela nem saberia, ou saberia? Se eu morresse, ela iria no meu velório? Se ela fosse, iam dizer: vossa santidade, manipuladora e destruidora de sanidade mental, chegou; e chegou na companhia do cara com quem ela ria no shopping. É só pensar nela que a morte já vem fértil em minha mente, morte de quem, era o que eu queria saber, quem é que vai ter que morrer para que eu possa voltar a viver. E ela que vivia dizendo que eu não pensava em nada, olha aí, minha cabeça um nó.

Sei lá para onde eu ia, só ia. Pista limpa, livre, sem carro, sem gente, sem nada; a BR que leva para a casa dela estava livre, quinze minutos para chegar lá. Beirando a insanidade, afogado na sandice, entrei rasgando no Drive-thru no meio do caminho para lá. Que diabos era que eu estava fazendo é que eu não sei, sorte foi ter sido lembrado pela fome de que eu estava prestes a fazer idiotice. Débil mental, ela me explicava sentada no meu colo, é uma pessoa de mente fraca. Então era eu, me tornei débil mental, controlado por sentimentos. Ainda que fosse ódio, ainda que fosse raiva, ainda que fosse aquela sanha desmedida de quem dá cinquenta facadas em um cachorro morto, ainda era eu sendo controlado por sentimentos. O que vai querer, senhor? A voz da moça perguntava e eu, tentando parecer o são, tentando fazer a voz mais firme que eu tinha, fiz meu pedido. O que me dá raiva é que na beira da porcaria do balcão de espera tem pinturas dependuradas, para quê diabos pinturas dependuradas ao redor de um balcão de espera? Isso me dá raiva porque ela é pintora e, então, eu tenho raiva de tudo quanto é pintura porque eu não consigo sentir raiva dela. Não sei dizer se é boa pintora, ela me perguntava e eu não sabia dizer, não sou crítico de arte. O que eu pude notar, pelo que andei sondando da vida dela, é que ela melhorou muito; agora parece que pinta com mais confiança, parece que sabe o que está fazendo, parece que não precisa mais da minha aprovação. Inferno, não precisa mais da minha aprovação, como se eu quisesse analisar arte de uma artistazinha de beira de esquina; nunca nem gostei de arte. Se é boa pintora, então, eu não sei, mas sei que pintou com eficiência um quadro ruim de mim para todo mundo.


Pintora, artista, como diria ela, pode até ser útil para a sociedade. Mas e quanto a um cara que vende seguros? Sentado no carro, no meio da madrugada, com uma mão eu comia o sanduíche, com a outra procurava a maldita foto que ela postou com o cara. Achei o perfil dele e ele é vendedor de seguros. Digamos que ela seja útil, digamos que ela seja única, como ela deve achar que é, mas e quanto a um cara que vende seguros? Qualquer um pode vender seguros! Se ele some, se ele desaparecesse, outro vai lá e faz igual ou melhor que ele. Se alguma coisa se quebrasse nela também, talvez eu me consertasse; se ele morresse, talvez eu voltasse a viver. Na foto, que eu já tinha visto dezenas de vezes em dois dias (ou três, perdi as contas), ela, abraçada nele, sorria de um jeito menos tenso, de um jeito muito mais espontâneo do que quando tiramos nossa única foto juntos; mais viva, mais segura. Olhei novamente para a cara safada dele: barba torta, olheiras de quem passa noites acordado vendo pornografia na internet, as bochechas roliças amassadas pelo sorriso; ele olhava para ela como se só esperasse pelo momento de devorá-la, como se ela fosse uma cigana que tem algum tipo de sumo de vida.  Nesse rumo de pensamento, parece até que a vida é ela; quem a tem, tem vida. O foda é que eu não tive peito de ir lá me sentir vivo com ela, não tive coragem para tentar, perdi logo a paciência com o jeito nhem-nhem-nhem dela. Enquanto ela estava só, vá lá, eu sentia que ainda emanava vida para mim, ainda era minha; isso antes de ela se enlaçar com um vendedor de seguros. Foi esse vendedor de seguros aparecer para eu ficar cheio de nóia, dois dias pensando, repensando, sondando. Antes disso, eu nem queria saber, me perguntavam dela e eu fazia pouco caso; tá maluco que eu vou ficar com uma mulher adulta que ainda quer ir para a Disney? No dia que ela me veio com essa, cortei logo: se for para gastar isso tudo, que seja para a Europa, porra. Agora, Disney? O tal vendedor de seguros deve ter aceitado, imagino a cara dele concordando, engolindo os caprichozinhos dela, escutando as pseudociências dela, levando ela para ver filme infantil e comer com guardanapinho de pano no colo. Puta que pariu, o cara vende seguros, olhei o perfil dele todo e vi que a vida dele toda se resume a ser um banana, que diferença faz se um cara desses existe ou não? O imbecil, achando-se grande empreendedor, colocou o endereço no perfil. Débil mental. Ativei o localizador, limpei a boca na manga do casaco, girei a chave na ignição e comecei a odiar esse vendedor de seguros porque eu não consigo odiá-la. 


Ane Karoline


Celine
                Mais uma noite chuvosa em Berk, e Celine não poderia estar mais acostumada. Depois de enfrentar obstáculos que jamais teria imaginado, a garota aproveitava a calmaria que havia se espalhado após os eventos contra o doutor Black. Um ano havia se passado e, ela finalmente conseguia dormir sem ter pesadelos. É óbvio que depois daquilo as portas estavam sempre trancadas. Algo mais a deixava relativamente tranquila. A arma que Stella a havia entregue naquela noite ainda estava com ela, guardada em uma caixa de sapato em seu guarda-roupas.
                Ela sabia que talvez jamais tivesse coragem de usa-la, mas ainda sentia certa segurança ao tê-la ali. Em seu quarto o aquecedor tornava o lugar confortável e ameno. Ela lia um de seus livros favoritos de Jane Austen, sob a luz fraca do abajur, enquanto desfrutava de um bom chá. Tudo parecia tranquilo, e ela tinha planos de ter uma bela noite de sono, sem nenhuma preocupação. Tudo teria dado certo, se não fosse por aquele maldito sussurro.
                Começou com um vulto, sempre no canto mais escuro do quarto. Celine deu um pulinho na cama quando sua visão periférica viu o movimento e o borrão. Ela apertou as bordas do livro enquanto ofegava e sentia seu coração disparar. Se esticou na cama, completamente alerta. Não poderia ter sido uma sombra, pois as cortinas do dormitório estavam fechadas. A universidade de Berk nunca mais seria a mesma depois dos eventos de um ano atrás, mas tudo o que ela não precisava agora era de um novo motivo para ter medo.
                Instintivamente sua mão procurou pelo celular, na cama. Assim que o alcançou o sussurro deslizou pelo quarto. “Encontre Kelly”, dizia. Dessa vez ela realmente pulou na cama, olhando ao redor, afoita, esperando ver alguém. Correu para a parede, ascendeu as luzes do quarto e olhou ao redor. O sussurro voltou dizendo “Kelly”. Naquele instante Celine decidiu que o medo deveria ficar em segundo plano. Ela saltou sobre a cama, pegou o celular, que havia deixado ali no momento de medo, e discou o número da irmã. Levou o celular ao ouvido e aguardou.
- Alô? – Disse a voz do outro lado.
- Kelly, Kelly, você está bem? – Indagou Celine.
- Celine? Sim, eu estou bem. O que houve?
- Nada. Não foi nada, eu só tive um pressentimento ruim. Onde você está?
- Estou aqui na biblioteca, terminando algumas coisas. Vou ligar para Dave e ele vai me levar para o dormitório quando terminar. – Explicou a garota.
- Entendi. Tome cuidado, e não demore, promete? – Implorou Celine.
- Não se preocupe, logo estarei em casa.
                As garotas se despediram e desligaram. Celine ficou sentada na cama, irritada, pensando no quanto havia parecido ridícula ao telefone. Era como se ela estivesse vivendo aqueles terríveis dias quando eram ameaçados pela maldade de Black. Ela desligou as luzes, se enrolou em seu edredom e logo pegou no sono.
*
                O zunido começou fino e indistinto, mas logo tornou-se algo forte, até conseguir acordar Celine com o impacto de um baque surdo, porém alto. Ela saltou na cama, suando frio e ofegando. Olhou ao redor, desnorteada, tentando se situar. Foi quando viu. A silhueta negra não tinha olhos, boca ou qualquer outro detalhe humano. Era apenas a sombra de um corpo feminino, alto e delgado. Era como se a sombra de alguém houvesse se levantado do chão e estivesse ali, encarando-a. Quando a voz saiu, não era um sussurro, mas um coro. Parecia que havia três ou mais pessoas falando em uníssono.
- Encontre Kelly, agora. Não há tempo a perder.
                Então o terror inundou Celine. Seu maior medo era que algo acontecesse à irmã. Ela pulou da cama, ignorando o fato de que a figura espectral permanecia parada ali. Se jogou em um par de jeans escuros, calçou suas botas e entrou em um casaco grosso, com capuz. Sacou o celular e os óculos e partiu em direção à porta, parando com a mão na maçaneta. Ela virou-se para trás, olhando diretamente para a sombra.
- Onde? – Indagou.
- Biblioteca – Disseram as vozes.
                No segundo seguinte ela estava correndo pelo corredor do dormitório. Ouviu a porta do quarto bater atrás de si quando alcançava as escadas. Enquanto descia ela digitava um número em seu celular. Logo estava em ligação. Ruby atendeu no segundo toque.
- Onde você está, Ruby? - Indagou afoita.
- Em meu quarto. O que houve?
- Preciso de ajuda. Kelly pode estar em perigo. Você me leva à biblioteca?
- Agora!
                Ela desligou o telefone e Celine chegou ao andar onde ficava o quarto de Ruby. Ela disparou em direção à porta, mas, antes que batesse ela se abriu. Ruby saía usando uma jaqueta de couro por cima de um casaco de flanela com capuz. Celine parou à sua frente.
- Onde ela está? – Indagou Ruby.
- Na biblioteca.
- Vamos!
                Ruby pegou Celine pelo braço e as garotas desceram em disparada o último lance de escadas. Debaixo de chuva chegaram ao carro de Ruby, um velho Ford Focus cinza, que pertencera à sua mãe. As garotas deslizaram para dentro do carro com rapidez, enquanto Celine explicava, entre respirações entrecortadas, sobre a sombra em seu quarto.
- Eu sabia que você era a melhor pessoa para entender isso, já que eu sei que você sabe sobre essas coisas de espiritismo. – Explicou Celine.
- Você fez a coisa certa! – Concordou.
                Ruby engatou a ré e pisou no acelerador com força, saindo de sua vaga com tanta velocidade que os pneus cantaram. Então engatou a primeira e começou a acelerar. A chuva dificultava tudo, e o interior do carro estava quente e cheirando a bancos velhos, devido à umidade. No entanto, Ruby conhecia as estradas da Universidade de Berk como as palmas de suas mãos. Cada desvio, cada buraco na estrada, ela havia memorizado.
                Em pouco tempo elas praticamente voavam pela estrada, levantando uma nuvem de água e lama atrás de si. Celine tentava ligar para Kelly, mas o celular dela não atendia. Seu coração começou a disparar, e ela fez a única coisa que poderia naquele momento, fechou os olhos e orou.
- Chegamos! – Anunciou Ruby, parando o carro bruscamente.
                Celine saiu de seu transe e logo as duas garotas saíam do carro, correndo debaixo da chuva. Elas subiram a escadaria que dava acesso às amplas colunas de mármore que seguravam o telhado de estilo grego da biblioteca. Passaram pelas colunas correndo, e logo alcançaram as portas duplas do lugar. Ruby as abriu em um rompante, entrando na frente de Celine. Não havia ninguém no amplo hall de entrada, mas as luzes estavam acesas.
                A biblioteca tinha um tom amarelado, devido as luzes e luminária dispostas ali. Duas dezenas de mesas de estudo, retangulares, se dispunham em duas colunas, no centro. Ao redor, estantes abarrotadas de livros formavam um “C”, com as mesas de estudo no meio.
- Olá?! – Gritou Ruby.
                As garotas chacoalhavam os braços e retiravam os capuzes, olhando ao redor. Nenhuma resposta. Elas começaram a caminhar e foram até o balcão onde deveria estar a bibliotecária. Ali estava um copo vazio de café e o monitor do computador ligado, junto a um bloco de anotações com alguns rabiscos. Elas caminharam um pouco ao redor do balcão, esticando os pescoços para tentar localizar alguém.
- Kelly estava aqui, certo? – Indagou Ruby.
- Isso! Eu vou tentar ligar para ela de novo.
                Celine discou o número, levou o celular ao ouvido e aguardou. Segundos depois, em sincronia com o som de chamada de seu celular, ela ouviu o toque do de Kelly, não muito longe dali. Ela e Ruby se entreolharam, assustadas. Caminharam juntas em direção ao som, que as levou a uma das diversas estantes apinhadas de livros. Ali, no chão de linóleo escuro e manchado, estava o celular de Kelly. Celine o pegou, com as mãos tremendo. Ela olhou para Ruby, o choque estampado em seu rosto.
                Nesse momento, Ruby notou pegadas molhadas no chão. Ela caminhou alguns passos de volta, refazendo seu trajeto e notando um par extra de pegadas molhadas. Eram grandes e de aspecto masculino. Pareciam ter entrado pela mesma porta que elas, mas não paravam aqui.
- Tem mais alguém aqui, Celine. – Ela apontou para as pegadas.
- Kelly? – Gritou Celine, em desespero.
                Ela levou as mãos à cabeça, puxando os cabelos e se sentindo hiperventilar. Começou a andar de um lado para o outro. Foi apenas quando Ruby a agarrou pelo ombro, com força, que ela voltou a se focar.
- Vamos seguir as pegadas e encontrar sua irmã. – Disse impetuosa.
                Celine acenou com a cabeça e prendeu o choro na garganta. Estufou o peito e começou a seguir Ruby. Não havia pegadas de Kelly, pois os sapatos dela não estavam molhados. Então elas seguiram as pegadas que haviam sido deixadas, por quem quer que estivesse ali. Logo estavam correndo novamente. As pegadas as levaram ao canto mais longínquo da biblioteca, que levaria à saída de incêndio, que estava aberta, deixando o ar gélido da noite entrar. Elas se aproximaram da porta e sentiram o frio as açoitar no rosto. Apenas a luz de um poste impedia que a escuridão fosse total ali. À frente das garotas havia um campo extenso e escuro, sem árvores ou nada do tipo, apenas escuridão e grama alta. Celine começava a perder as esperanças novamente. O que havia acontecido? Ela precisava encontrar a irmã.
                Então o sussurro estava ali novamente. Dessa vez não em seu ouvido, mas em sua mente. E não mais a voz sussurrada, e sim as vozes uníssonas de antes. Ela a sentia como uma presença, como se alguém estivesse parada a seu lado, encarando-a de muito perto.
- Eu posso te levar até ela... – Dizia.
                Então me leve, pensou Celine. Ela fechou os olhos por um instante, permitindo-se ser guiada. Repentinamente, como se num passe de mágica, ela sabia para onde ir. Era mais instinto que conhecimento. Não havia um plano, apenas a intuição crua e a certeza no peito de que aquele era o caminho.
- Me siga! – Gritou para Ruby.
                Então disparou. Os pés afundaram na lama escura e a chuva caía como canivetes em suas costas, mas ela não se importava. Correu pelo descampado aberto e escuro, como se sua vida dependesse disso. Ela conseguia ouvir as botas de Ruby guinchando atrás de si, mas não diminuiu o passo. Estava grata de ter trazido a única pessoa que não a bombardearia com uma centena de perguntas, que era mais ação e menos papo. Ela pensava no quanto era fraca normalmente, enquanto comparava a sua força atual com a Celine que era. “Sou forte” dizia para si mesma.
                Ela se permitiu lembrar de tudo o que havia enfrentado no passado. Uma lembrança dolorosa, na verdade. Pensou em quanta força ela havia encontrado dentro de si para sobreviver ao grande pesadelo de sua vida. Ela sentiu a adrenalina a envolver e a conceder toda a força de que precisava. Era como se ela pudesse ver no escuro, como se sentisse a localização da irmã. Seus pés conheciam o caminho que sua menta não estava ciente. Enfim, em meio àquela escuridão opressiva, ela a viu, parada de pé, no meio da tempestade.
- Kelly! – Berrou.
                Só então viu que a irmã não estava sozinha. Havia uma silhueta similar à que ela havia visto em seu próprio quarto, mas essa era feita de luz. Ela parou abruptamente, sentindo os pés escorregarem na grama enlameada sob si. Ruby, que vinha logo atrás, parou também. Elas observaram a figura, e Celine notou algumas diferenças. Essa silhueta era masculina, muito mais alta que um ser humano seria, e brilhava de forma limitada. A luz não irradiava, era como uma daquelas pulseiras de neon de festas de aniversário.
                Kelly estava parada à frente daquela silhueta, acenando com a cabeça como se estivesse em uma conversação, mas sua boca não se mexia. Celine estranhou estar conseguindo enxergar tão claramente em meio àquela escuridão. Então notou que a presença do homem era similar à da lua e, apesar de não iluminar na mesma intensidade, havia tornado aquela clareira mais visível. Kelly finalmente pareceu notar a presença da irmã e de Ruby. Ela virou-se para trás, lentamente, observando-as.
- Celine? – Indagou confusa.
- Kelly, venha para cá! Saia de perto dele, agora! – Gritou Celine.
- Não! Você não entende, ele é um aliado. Ele veio nos avisar de uma tragédia.
                Celine não conseguia acreditar naquilo. Foi quando a silhueta feminina que a havia visitado no quarto surgiu. Dessa vez ela também era feita de luz. Apesar de não ter nada ali que a desse a certeza de que era a mesma figura, o instinto dentro de Celine a dizia que era. Ela se aproximou um passo, com Ruby bem atrás dela. As duas se juntaram a Kelly, que segurou as mãos da irmã, que encarava fixamente as duas figuras.
                O homem e a mulher de luz se abraçaram, e ele permaneceu com o braço ao redor dos ombros dela, enquanto olhavam para as garotas.
- Nós somos oráculos de outro mundo. – Disse a mulher com sua voz múltipla – Viemos para alerta-las, todas as três, de algo ruim.
                As garotas se entreolharam.
- Celine, Kelly e Ruby, uma pessoa ruim chegou à cidade de Berk. Essa pessoa tem um plano maligno, de libertar nesta cidade uma criatura temível, que trará o caos e as desgraças para cá. Como protetores dessa cidade, é nosso dever alertá-las. Ele está a procura de algo que vocês devem proteger. – Disse o homem.
- O que exatamente é esse ser? – Indagou Ruby.
- Uma entidade. Ele vai precisar de um corpo físico para agir, e para isso ele vai procurar um sacrifício. – Respondeu a mulher.
- Por que nós? – Indagou Ruby.
- Pela força que adquiriram, e por já terem lutado contra a escuridão antes. – Respondeu o homem.
- Não é dever de vocês fazerem isso? – Questionou Celine.
- Não podemos agir no mundo físico. –Explicou a mulher.
- Como encontraremos essa pessoa? – Perguntou Kelly.
- Essa pessoa estará à procura de Alrisha. Encontre Alrisha e encontrará seu inimigo. – Disse a mulher.
- Mas o que é isso? O que é um Alrisha? – Indagou Celine.
                Mas era tarde. As figuras começaram a se dissipar como poeira ao vento. As garotas gritaram tentando alcança-las, em vão. Então uma luz as atingiu, fazendo com que cobrissem os olhos. Por reflexo, Kelly e Celine se esconderam atrás de Ruby. Elas forçaram a vista.
- Tire essa lanterna da minha cara, seu idiota! – Berrou Ruby.
                A pessoa obedeceu, revelando ser um dos seguranças do campus, ao apontar a lanterna para cima. Ao seu lado estava a bibliotecária, debaixo de uma sombrinha florida, com cara de preocupada. Ela era alta, com quadris largos, cabelos de um laranja similar a cenouras, e óculos finos e redondos.
- O que vocês estão fazendo aqui? – Perguntou o guarda.
                As meninas se entreolharam mais uma vez, desconfiadas.
- Isso não é importante. – Interrompeu a bibliotecária. – Para dentro, meninas! Agora!
                Elas obedeceram. Caminharam em silêncio até a biblioteca. Suas mentes ainda processando a nova informação. Alguém ruim estava ali. Mais um pesadelo se aproximava, e elas eram as escolhidas para impedir. Faltava tanta informação, havia tanta coisa para pensar. Seria este o início de uma nova história?
Continua...

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Deitado de barriga para cima, mais uma vez sem sono, sem vontade de dormir, sentindo minhas costas já afundando no colchão pelo longo tempo na mesma posição, mas sem vontade de me virar para o lado. Sabia que se me virasse para o lado, os óculos iriam ficar naquela posição desconfortável e, então, eu os tiraria, fecharia os olhos na vã tentativa de dormir. Depois desistiria, abriria os olhos e ficaria olhando o teto sem vê-lo. Essa história de olhar sem ver é coisa dela também, ela deve ter me rogado uma praga, pedido para os anjos para que essas frases de efeito ficassem rondando minha cabeça – vai saber, ela era meio mística, meio tudo. Frequentemente isso se repete, quando eu estou mais cansado e com raiva; ela me vem quando eu estou fraco; é como se meu cérebro soubesse que quando forte, não preciso dela.

Percebi, mais uma vez, que não dormiria e, remotamente, pensei em ler um livro. Ler alguma coisa, que fosse. Ri de mim mesmo: eu nem gosto de ler. Ela deveria estar lá, lendo às pampas e conhecendo palavras melhores que “às pampas”. Olhei a tela do celular: 23:57. Ela deveria estar dormindo, será? Será quem tem aula cedo? Pensei ter visto em algum lugar, ou alguém me falou que sim: ela tem que acordar cedo às segundas. Devo ter visto em algum lugar, ninguém me falou não, eu não falo dela com ninguém, eu não falo dela para ninguém. Os poucos que sabem, nem me perguntam mais... Já tem o quê? Cinco, seis anos? Espero que em mais cinco, ela suma. Evapore da minha cabeça como minha paciência evaporava com ela. O único amigo que fala nela é sempre para me deixar puto de raiva, é sempre para me dizer que eu ainda gosto dela. Nunca gostei, eu respondo. E não minto, não sei mesmo se gostei, por isso não sigo o conselho do Maurício e não vou falar com ela, se eu for falar, ela vai querer certezas, vai se negar a ficar com alguém em dúvida. Que raiva que eu tenho disso. O que eu vi no shopping não parecia uma certeza, não parecia um para sempre, não parecia porcaria nenhuma; mas se for comigo, ela quer certeza, quer me atormentar com perguntas para as quais eu não tenho as repostas.

Afora a insônia e essa indignação que me gerou o fato de tê-la visto, mal nenhum ela me fez, o mal dela é amar, aliás, o tal jeito dela de amar. Ama e acha que a gente tem que amar de volta, que a gente tem que gritar isso na rua, tem que apresentar para os conhecidos. A desgraça que seria se eu levasse ela em casa... Isso ela não vê, nunca viu. Na primeira piada machista do meu pai ela ia fazer o quê? Revidar? Quando minha mãe deixasse de jantar com a gente para lavar as louças ela ia responder o quê? Um discurso? Evito esse tipo de coisa. Quando eu pensava, quando eu penso – porque eu ainda penso – em trazê-la em casa, pensava no trampo que ia ser para termos, pelo menos, um segundo de paz no meu quarto, sem ninguém para encher o saco; antes disso ia ter que atravessar meio mundo de gente e eu pisando em ovos por causa das opiniões fortes dela. Quer opinar em tudo também, inferno. Tá, eu também gosto de ter minha opinião, mas não fico gritando por aí, levantando bandeira de tudo quanto é porcaria o tempo todo. Pronto, conseguiu me estressar mesmo sem estar aqui. Só em lembrar, já me dá raiva de tudo: raiva porque eu ainda moro com meus pais, porque ela é difícil de lidar, porque eu fico calado, por tudo, raiva de tudo; agora fico me perguntando porque já passa da meia noite e continuo pensando essas porcarias. Tem gente babaca, como o Maurício , que diz que depois do que eu vi ontem estou triste. Engoli em seco? Sim. Achei esquisito e tudo, mas triste não estou, não sinto nada. Triste é quem perde parente em acidente de carro, triste é quem descobre que o padrinho morreu, triste é quem tem câncer. Eu fiquei triste quando achei que ela tivesse câncer – o que foi o primeiro motivo pelo qual eu meti o pé e saí fora pela primeira vez – porque ela reclamava de dores de cabeça, tinha espasmos. Com dezessete anos, como eu ia lidar com espasmos? Não deu. As dores de cabeça dela deveriam ser eu porque agora ela, pelo que sei, não as tem mais; ontem ela ria e não parecia ter dor de cabeça nenhuma. Não perguntei nada para ela, mas eu sondo; é melhor assim, ser sombra que presença.

Sombras somos os dois: ela, com aquele jeitinho, e eu. Ela nem me viu, eu acho, mas parece que acendeu a porra de uma dinamite no meu cérebro, uma dinamite que está para explodir; dois dias sondando, pensando, repensando. Escuto uma música, lembro; vejo um negócio aqui, outro ali, eu lembro dela. Eu nem gosto dela, tenho certeza disso. Se me chega alguém e me oferece um trocado qualquer: ela ou o dinheiro? Eu escolho o dinheiro! Por que é, então, que ela fica fazendo aparições na minha mente, surgindo quando estou distraído, em flashes que se repetem mais que a música hit do carnaval? Nem para isso ela serviu, nem para ser carnavalesca, nem para ser uma desgraçada que gosta das coisas que eu não gosto, nem para ser uma ordinária que age de um jeito que dá nojo, que assim eu tomaria logo ódio e não teria essas epifanias esporádicas. Se é que já não tenho ódio, talvez essa obsessão seja ódio por ela ter estragado tudo; aparecendo com aquele jeito de “quero te conhecer”, assistindo minhas coisas preferidas, cantando as músicas da banda que eu gosto nos tons mais agudos que eu já escutei, um tom capaz de penetrar minha mente e me atormentar.

02:23 e eu acordado ainda, se é que a cólera deixa alguém realmente acordado. É certo que alguma coisa despertou em mim nos últimos dois dias, alguma coisa que me diz para acabar logo com isso. Escuto o barulho abafado de alguém abrindo a torneira do banheiro, encaro o teto como que assombrado, mas assombrado por dentro, o fantasma dela me persegue e não me deixa seguir em frente. Ainda hoje, mesmo sei lá quantos mil dias depois, lembro de como ela fazia um beijo parecer uma coisa importante; parecer um momento especial, e isso me assombra. Essas importâncias ridículas me perturbam como se me cobrassem alguma coisa que eu sei que não devo a ninguém. Será que sei? Ela tem esses misticismos, eu não. Eu sempre planejei as coisas pensando na realidade, sem especulações fantasiosas, sem pseudociências, sem sentimentalismo irracional; e, ainda assim, fiquei atazanado quando ela não me mandou um “feliz aniversário” esse ano. É por isso que tem algo errado, o fantasma de alguém que não significa nada para mim, me atormenta; pior, o fantasma de uma pessoa viva. Viva demais. A cabeça já doendo, os olhos ardendo de cansaço, decido que tenho que me livrar dessas memórias quentes e festivas, ilusões, memórias agitadas de alguém que não deveria estar roubando minha paz. Ela vai ter que sumir, da minha mente e da minha vida, de um jeito ou de outro sobrou para mim resolver isso. Às 02:57, no ápice da raiva, peguei as chaves do carro, joguei o casaco velho da universidade no ombro direito e saí fechando a porta com cuidado para não acordar ninguém em casa.




Ane Karoline

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Com as duas mãos ao redor da xícara quente, já inebriada, embebida pelo aroma do chá, me lembrei. Acho eu que tudo se deu porque eu mesma já devaneava tanto que me via líquida como aquele chá, navegante perdida, afogada. Sempre mergulhando, até em pensamentos mergulho; sempre me lançando, até em relacionamentos me afundo, não posso mentir nisso; vou mentir para quê? Não é raro eu me perder em descomedimento. Um chá mesmo, veja bem, eu bebo quente, fervilhando ainda, embaçando os óculos com o vapor, que é para sentir a quentura quase me queimar a língua, aquecer a garganta e chegar rasgando no peito. O chá, para mim, é tomado assim: para ser sentido. 

Me parece - lembre-se sempre que o que me parece não condiz necessariamente com a realidade - que esse chá de hoje eu senti mais por ter esquecido de adoçá-lo, mas por outras coisas também. Sorrindo, então, com o peito inflamado pela temperatura, pelas doiduras, pelas dores e pelas suturas, usando o meu mesmo moletom velho, a lembrança veio num jato;  foi sentir o chá no peito para que eu logo me lembrasse da pergunta que há um tempo te fiz. Lá, aquele dia, eu ainda não sabia o que era mesmo tomar um chá, sabia apenas que chá pode ter significados variados e pode não ter nenhum. Dostoévski, por exemplo, achava que tomar chá era um luxo; minha vizinha já não acha; a gente achava que chá só servia para alívio de doença. A cena é ainda morna na minha cabeça, como a xícara em minhas mãos: eu, deitada, olhado para o teto escuro, te perguntei "o que é tomar um chá?". Pergunta maluca e despretensiosa para a qual não tínhamos resposta, questionamento incongruente sobre o qual fazíamos piada. Mas hoje me veio ela, a resposta. Me veio nessa xícara de chá sem açúcar: tomar um chá é tomar tento, é tomar tempo para respirar. 

A função do chá é que muda, mas o gesto não: cuidado. Se tomado sem companhia, cuidado consigo mesmo; se em companhia, cuidado com o outro. Já as incumbências é que podem ser das mais variadas; o chá gelado da semana passada, tomei para cuidar do estômago, coitado; o chá com aquele moço eu não tomei porque teria outro final; o chá que tomo em julho é para cuidar da garganta no inverno; o chá que tomo hoje é para aquecer. Com essa xícara, procuro, agora percebo, confortar os espaços vazios no meu peito, reservados a quem já se foi, espaços que ficando esburacados; os quais não posso, e nem quero, preencher, então, aqueço-os. E o chá que você, bem sei, participa sem mim, é cuidado também: é como que para me provar que a gente só toma chá com quem satisfatoriamente nos acolhe. Espero que te refugiem no calor da coletividade enquanto percebo que, para mim, tomar chá sozinha é o que convém. Continuemos, então, tomando chá, tomando tento, tomando tempo - seja lá qual for a intenção e a função dessa fusão. 

com amor
Ane Karoline

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Hesitante mais uma vez, no exato instante de agora, hesito. Mesmo agora, mesmo sendo quem tem propriedade para falar, mesmo sendo quem sente na pele todos os dias, hesito. Oscilo, me equilibro nessa corda bamba, que é ser mulher, enquanto vejo a torcida para a minha queda; me querem de joelhos. Quanto mais de pé fico, mais forte vejo ambas a euforia e a animosidade crescerem em repúdio à minha audácia. Se pedras haverão de me atirar, de pé estarei. É de pé que venho dizer o que me inflama o peito porque, assim, não admito que beltrano algum venha colocar o bedelho: aconteceu comigo e o espaço de fala é meu. 

Minha memória, para azar da maioria, é excelente, então, me lembro bem quando começou. Eu tinha exatos DEZ anos de vida e ganhei de aniversário uma calça legging rosa claro, o tecido era algodão grosso com laycra, não era transparente, mas era uma calça legging. Lembro-me, ainda, que  recebia incentivos dos meus pais para me empenhar mais nas aulas de educação física - nas quais meu desempenho sempre fora lastimável, dada minha falta de habilidades desportivas -  e, para tal, deveria estar devidamente vestida: calça legging. Pois bem, a legging rosa claro era do que eu estava falando, certo? Decidi usá-la a primeira vez no domingo para ir ao verdurão na esquina da minha casa, a pedido do meu pai, comprar umas cebolas. Tão logo entrei, o vendedor me encarava e sorria (o que agora sei ser um sorriso malicioso); ele, que deveria estar na casa dos trinta anos, não perdeu a oportunidade de elogiar minha roupa e dizer que eu já estava uma mocinha. Para encurtar o relato, digo apenas que o tal vendedor não podia me ver que assobiava, me chamava, me seguia até em casa, coloquei a culpa na calça legging e tomei raiva de roupa justas antes de completar onze anos. Inúmeras vezes criei caso em casa para não usar malha e nem laycra, a culpa era da calça. Não preciso nem dizer que meu renome de menininha-que-não-sabe-jogar-bola só cresceu, uma vez que os professores de educação física não me permitiam jogar bola com calça jeans. 

O que se seguiu em minha vida foi de tal forma intenso que, nem mesmo com minha memória excelente, sou capaz de lembrar de tudo. Assédios diários, vestida de burca ou de saia, calça jeans ou legging, no supermercado ou na padaria. Incontáveis. Violentos. Ouvi palavras que eu nem sequer conhecia e que agora, uma mulher adulta, me horrorizo ao descobrir seus significados. Sexualizada onde quer que fosse, menina, mocinha, adolescente, mulher: a que nasceu exclusivamente para o prazer do patriarcado, a que nasceu para procriar, calada. 

Segui o conselho e segui tácita, quieta. Ainda assim, aos doze, o professor de geografia fazia questão de elogiar minhas roupas e meu corpo; logo minhas notas em geografia caíram. Aos treze, o catequista me perseguia e constrangia; comecei a chorar para não ir à catequese. Aos dezesseis, o professor de inglês me propôs conversas em particular, fui estudar a noite. Na adolescência inteira, colegas, sobretudo mais velhos, de igreja se acharam no direito de me perseguir, me constranger, me obrigar a dar atenção a eles - ainda que dentro da igreja, e com a justificativa dela. Na escola, os shorts eram recriminados, mesmo os meninos podendo usar bermudas de quaisquer espécies, mesmo quando a primavera em Brasília chegava a 37 graus e minha pele, atópica, ficava cheia de bolhas. Sempre desviando, segui caminhando, me desculpando, trilhando um caminho a ponto de acreditar que a culpa era minha. De alguma forma, pensava eu, de alguma forma a culpa deveria ser minha e, por isso, deveria me calar.

Calada fui, tímida, retraída, oprimida, sem comentar com ninguém, achava que era só comigo, a sujeira deveria estar comigo, para tanto assédio receber. Sofri até. Até ouvir uma amiga contar sobre o medo que ela sentia, algo se reconstituiu em mim naquele momento: ela também sentia. Comecei a ouvir, a perguntar, a perceber as mulheres ao meu redor: amedrontadas. Medo dos assobios, medo do assédio, medo dos gritos (que, primeiro, são convites e, depois, são xingamentos): medo do estupro. Medo de que, por um descuido; um cabelo solto; um brinco; uma calça justa; simplesmente pelos dois cromossomos x, fosse a próxima a aparecer no noticiário ou, pior, a próxima a nem sequer aparecer no noticiário, morta, esfrangalhada, despedaçada, esquecida. Medo de ser uma das cento e trinta mulheres estupradas por dia. Medo de ser a próxima nos próximos onze minutos; medo de dormir no ônibus; medo de sentar próximo a um homem porque ele, certamente, vai abrir as pernas mais do que deveria; medo do motorista que encara minhas coxas quando entro no ônibus; medo do cobrador que me encara a viagem inteira; medo do cara que me encara no carro ao lado, quando dirijo; medo de sair. Medo de andar; medo ir à uma festa; medo de ficar sozinha com um homem; medo do vizinho; medo do professor da faculdade que olha meus seios, enquanto escrevo; medo do padastro; medo do pai. Medo de existir. Medo que existe porque é a gente que vê acontecer, porque é a gente que sente, é a gente  que ouve, é a gente que se recolhe na vã tentativa de se proteger contra os que são protegidos, os que são aplaudidos, os que são incentivados a serem desinibidos. 

Ser quieta, calada, retraída nunca me protegeu parecia, ao contrário, atiçá-los. Resolvi falar, então. Dizer não ao namorado que queria casar aos dezessete; negar beijo ao cara que chamou para um sorvete; reclamar com quem me apalpa "sem querer" no ônibus; gritar. Enfrentando desgraças e desgostos, me coloquei no local reservado para quem porta o cromossomo y, me infiltrei no lugar que, ainda hoje, é aclamado para eles. Foi lá, quando comecei a pesquisar, questionar, escrever e publicar que comecei, finalmente, a entender, a me perdoar: não tenho culpa, sou mulher, mas não tenho culpa. Foi quando, e só quando, seguraram na minha mão e me ensinaram que quem decide sobre o meu útero sou eu; que devemos, sim, falar sobre a dor que sinto todos os meses antes que eu morra de endrometriose, que eu comecei a dissipar a raiva. Me ensinaram, me condicionaram a sentir raiva de mim, a me odiar. Me ensinaram que a culpa era dos meus traços femininos, do corpo que ganhei ao começar a perder sangue, do jeito como sento, das roupas que uso, do cabelo longo. Me ensinaram que a culpa era minha e que, acontecesse o que fosse, eu deveria arcar com isso. Ainda que me agredissem, ainda que me traumatizassem, ainda que me assediassem, ainda que me estuprassem: eu deveria arcar com os prejuízos. Quanto aos lucros, quanto ao sexo, quanto à vida que posso gerar, quanto ao que devo comprar, quanto a como deve me vestir e me comportar, sobre isso sempre quiseram decidir e opinar. Eu, mulher, que fique com os prejuízos. Não mais.

De pé, sangrando dez dias por mês, é que grito: não mais haverão de me diminuir. Grito por mim e por outras. Grito pelo medo, pela raiva e pela justiça. Sigo gritando porque sei que ainda muitas, como eu, precisam de alguém que diga a elas a verdade: ser mulher é ser forte. Sigo gritando até quando eu tiver voz, até quando eu tiver o que dizer e quem, por ofendido ou culpado que se sinta, não quiser me ouvir, é convidado a sair. Estarei berrando até quando for preciso advogar em defesa da igualdade e do respeito às que sempre foram injustiçadas. Grito porque sei que querem nos calar, nos querem ajoelhadas. Ajoelhadas só estaremos se bem quisermos, onde e quando quisermos. Por enquanto, fiquemos de pé. 

com amor, 
Ane Karoline