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Em dezembro foi a festa de aniversário de cinquenta anos da tia Verinha. Apesar da pouca idade, titia foi constatada com alguns sintomas de Alzheimer. Um mês antes de seu aniversário, tio Zeca anunciou:


 Somos oito irmãos. Cinquenta anos é uma idade muitíssimo importante. Faremos uma festa surpresa para a Vera Lúcia!


Diante da mudez dos irmãos e alguns olhares severos, provavelmente preocupados com os impactos que uma festa poderia causar na memória prejudicada de Verinha, tio Zeca deu de ombros e usou seu poder de convencimento.

 Bom, vocês é que sabem. O médico de Verinha, Dr. Paulo, é um moço muito experiente. Ele me disse que Alzheimer é uma doença degan... Degena...

 Degenerativa, Zeca! - Alguém completou impacientemente.

 Isso! Degenerativa! E os sintomas são progressivos. Se entendi bem, com o passar dos anos Verinha vai ficando pior. Sabe, se não quiserem, eu mesmo farei uma festa para a minha irmã enquanto há lucidez. Levo um bolin e canto parabéns. Verinha e eu.

Bastaram quinze minutos de chantagem emocional e todos os presentes decidiram: faremos uma festa para Verinha. De repente, a pequena sala de estar virou uma confusão de vozes femininas e masculinas que insistiam em serem pronunciadas ao mesmo tempo.

 Horas? Já pensou no horário, Zeca? Podemos fazer a festa de manhã cedo.  Sugeriu Lúcia.

 Pelo visto, a idade está mexendo com os seus neurônios, Lúcia. Nunca ouvi falar de uma festa marcada para o turno matutino. - Alfinetou Carmen, que nunca teve papas na língua.

 De tardezinha. Cinco, seis... Por aí! Hora que o Sol estiver indo embora. - decidiu, por fim, tio Zeca.

Brigadeiros pela mesa, dois pacotes de balões azuis bem distribuídos pela cozinha e um bolo coberto de glacê com duas velhinhas, cinco e zero. Era sete de dezembro. Aniversário de tia Verinha. Depois de cantarmos o clássico parabéns pra você e alguns sucessos da bossa nova, preferidos da aniversariante, os irmãos conversaram por três horas seguidas. Teve a história de quando Lúcia rasgou seu vestido de quinze anos no dia da festa; a história da primeira namorada de Zeca que quebrou o dente enquanto o beijava; a história de quando Paula quis fazer uma tatuagem e os pais não deixaram (...) Paula fez greve de fome por dois dias, disseram. De nada adiantou.

Em todas as reuniões da família, as histórias eram sempre contadas por tia Carmen. Bastava a frase "Isso me lembra um dia!" para entendermos: era a hora do show da Carmen. Todos sentávamos e ela, em pé, contava histórias repetidas.

Naquele dia, enquanto ela certificava-se que todos estavam atentos à história da tatuagem nunca feita de Paula, o olhar de tia Carmen parou em mim. Pausou a história, franziu a testa, apertou os olhos, em uma tentativa de enxergar melhor. Em seguida, convicta do que tinha visto, os expandiu. Por dois minutos me fitou, até que disse:

 Isso no seu braço... É uma tatuagem, Aninha?

Olhei para o meu braço direito, conferindo. O desenho já fazia parte da minha pele há oito meses. Tia Carmen já tinha me visto duas vezes, desde então. Eu tinha certeza. Mas, ao me deparar com o olhar surpreso, conclui que só agora ela havia reparado.

Balancei a cabeça, concordando. Tia Carmen permaneceu em silêncio, esperando uma explicação. Em pouco tempo, toda a platéia de tia Carmen estava voltada para mim. Tios, primos, bisavós e algumas amigas da tia Verinha. Cabeças viradas e olhos atentos, esperando uma continuação. Senti o meu rosto corar e tentei sair da situação:

 Ah, isso daqui...  Fingi naturalidade   Sim, uma tatuagem. É muito importante pra mim, representa força, intuiçã...

 Meu Deus, Ana!  Tia Roberta grita do outro lado, surpresa.

Meu coração pulou. Ah, minha nossa! Mais uma, pensei. Era fim de festa e eu só queria terminar de apreciar o glacê do meu pedaço de bolo.

 Sim?!  Fingi tranquilidade, abrindo um sorriso. Percebi naquele instante que sou realmente boa nisso. Escapar de situações constrangedoras.

 Você está tão diferente! Não de um jeito ruim, você sabe... Gostei da tatuagem. Gostei mesmo! O corte de cabelo te deixou mais nova.  Houve uma pausa, enquanto todos me analisavam e concordavam, impressionados  Você está mais leve!

Antes que eu pudesse agradecer, tia Carmen acrescenta:

 Mais leve e mais feliz. Foi, finalmente, pedida em casamento, querida? Conta pra gente!

Engoli em seco e anunciei:

  Na verdade, nós terminamos. Há dois meses.

Bocas se abriram e olhares perplexos congelaram em minha direção. Até mesmo das amigas de tia Verinha, que não me conheciam, apenas seguiram o fluxo e fingiram surpresa.

 Ana! Você terminou com o Felipe? Isso é sério? Aquele menino de ouro!  Tia Carmen balançou a cabeça reprovando-me.

 É, bom...  Bebi o resto do suco de abacaxi armazenado no copo em que eu segurava, para ganhar tempo  Foi o melhor a se fazer.

 Eu nunca gostei dele!  Anunciou uma voz atrás de mim. Todos olharam perplexos, incluindo eu. Era tia Verinha, que estava calada desde os parabéns  Quero dizer, se eu posso opinar: quando eu tinha a sua idade, dezenove anos, eu passei pela mesma coisa, Aninha querida. Rompi com um rapaz quando todos estavam cheios de expectativas sobre o nosso casamento. A minha família e a dele. Às vezes a gente precisa disso. Ser livre, apreciar a nossa própria companhia [...]

Tia Verinha nunca foi de conversar, mas sete de dezembro passado ela falou, falou e falou. A conclusão que eu guardei, de todo o longo discurso: se eu e todas as mulheres do mundo não quiserem casar, tudo bem.  Eu posso me ocupar viajando pelo mundo, aprendendo receitas ou comprando cactos para o jardim. Tia Verinha foi sagaz e também deixou nas entrelinhas algo que, acredito eu, todo mundo ali entendeu. Vez ou outra, uma aniversariante com início de Alzheimer é mais lúcida que trinta convidados sem diagnósticos de doenças degenerativas.

Ane Kelly Silva

Imagem: weheartit.com


Historinhas a gente tem aos montes - contos, estórias e história-  de vida nossa e das vidas alheias. Todas as vidas merecem ser contadas, e agora é hora de Isabel. Isabel tinha uma coisa, uma coisa diferente, e muita gente a julgava tola. Mas a verdade é que ela sempre fora uma acreditadora: sempre acreditou na força do destino, era uma caçadora de sentidos. Parece papo místico, mas é praticidade. Isabel acreditava que tudo acontece por uma razão, tudo tem um motivo que, mais cedo ou mais tarde, vai aparecer e vai gritar para nós: oi, eu sou a razão pela qual você passou tal coisa. 

Reclamava pouco, a Isabel. Se tropeçasse, era sinal para trocar os sapatos; se a comida fizesse mal, era para que ela se alimentasse melhor; se perdesse o ônibus, era para evitar acidente; se tivesse um tumor no cérebro, era para valorizar a vida. Até dos relacionamentos acabados, Isabel sempre levava algo bom, quando questionada, arrumava exemplo até não caber mais: "Quando Lucas me traiu, aprendi que devo me amar em primeiro lugar."; "Quando Amanda me abandonou, aprendi que podemos fazer novos amigos." e quando os exemplos acabavam, ou não convenciam, ela acrescentava: "Todo mundo passa pela nossa vida por uma razão."

Seguiu assim, acreditando, até conhecer Miguel. E, aí, acreditou mais. Miguel: todo inteligente, todo misterioso, todo meias palavras, todo, todo. Miguel: mesma turma de Introdução à Linguística de Isabel. Miguel e Isabel: seis letras cada um. Seis vezes três (pois se conheceram no dia três de fevereiro) é dezoito: a mesma idade tinham. Para Isabel, não tinha como negar, o destino estava ali, gritando, berrando e explicando que as relações anteriores fracassaram somente para que ela encontrasse Marcos. 

Outra coisa coisa que Isabel tinha era uma mania de ser persistente. E, com Miguel, foi. Persistiu por longos três anos, procurando sentido e dizendo a si mesma: temos uma conexão, temos uma conexão, temos uma conexão. Até que, enfim, Isabel se cansou. Quando foi embora, Miguel não hesitou: "Não temos conexão, tínhamos afeto e afeto acaba".Acabou-se Isabel.

De tanto procurar, cair e levantar, Isabel resolveu aceitar que de todas as relações anteriores havia levado alguma coisa, aprendido alguma coisa, sempre restava o amor -  da relação com Miguel, só restara a dor. Aí, quis que ele não existisse. Fechava e abria os olhos, esperando que ele fosse apagado da história da vida dela. Não que quisesse que ele morresse, não, queria é nunca tê-lo conhecido. 

A verdade é que a dor maior foi perceber que estava errada, que não havia razão nenhuma, que Miguel nunca lhe trouxera bem nenhum. Deixou-a aos pedaços, tentando recolher-se e encontrar-se nas palavras; tentando se organizar nas páginas e páginas que escrevia para ele. Páginas que ele mesmo fazia questão de jogar fora. A Isabel toda cheia dos clichês, se doía toda por perceber que havia desperdiçado sua poesia com um Miguel tão indiferente, tão insosso. O Miguel era um poço vazio, oco, um vão, um abismo, onde a Isabel tentou plantar poesia. E enquanto estava entretida com Miguel, não faltava gente em quem investir a poesia de Isabel. Tinha até gente que pedia: "Me escreve, Isabel". E ela nada, só tinha olhos para o Miguel.

Depois que Miguel se foi, a magia foi parcialmente destruída. Ele deixou para a Isabel a pior compreensão: nem tudo na vida tem uma razão. Hoje Isabel sente a vida como uma eventualidade, e se dói, porque é dolorido demais se sentir solta ao acaso.

Calha que o acaso tem leis imprevisíveis e Isabel, talvez, ainda não tenha conseguido é compreender esse erro. Foi, sim, um erro. Miguel foi o erro da vida de Isabel, o erro trágico de Isabel. Todo herói precisa de erro trágico, Miguel foi o erro cometido para que Isabel se tornasse heroína - e o mérito é todo dela.

O texto acima foi escrito em resposta a um e-mail de um/a leitor/a. Quer contar algo? Pedir um conselho? Conversar? Mande seu e-mail para: papocomjulieta@gmail.com

Forte abraço! <3

"Fica pior à noite, quando estou...sozinha"

Como diz Ed Sheeran: Eu fico pensando como pessoas se apaixonam de formas misteriosas. Eu sempre penso muito quando ouço essa música. Apaixonar-se não deveria ser tão complicado como tem sido nos últimos tempos. É tão bonita essa urgência de ter a pessoa por perto, essa necessidade do toque, do beijo, da voz. Sempre gostei de admirar os casais que vejo na rua.
Gosto de imaginar o que fez eles se apaixonarem e o caminho que traçaram para chegar até ali. Admirei, ontem, um casal que entrou no voo em que eu estava. Ele sentou e esperou ela acomodar-se, logo em seguida deram as mãos e ficaram assim o voo inteiro. Imaginei como havia sido o seu casamento e como ele reagiria com uma notícia de gravidez. Crio várias situações mesmo, normal. Quando desembarquei, havia um garoto com um buquê de flores a espera da namorada. Quando ela chegou, paralisou ao vê-lo ali, sorriu e correu para os braços dele.
A cada cena dessas imagino quando chegará a minha vez, isso se chegar um dia. Eu sempre acreditei em finais felizes, cresci lendo os inúmeros livros de contos de fadas e princesa. De uns tempos para cá, apesar de ainda acreditar nisso tudo, não acho que vá acontecer comigo algum dia. Esse pensamento dói. A vida te prega peças quando você parte o coração de alguém. Parece que tudo fica mais distante e restam apenas as lembranças que guardo dos romances que já vi e ajudei. Talvez a minha missão, se é que existe isso, seja ensinar as pessoas o quanto o amor é bonito e que as coisas podem ser consertadas ao invés de descartadas, e não viver isso da mesma forma.
-Thayná de Paula

O texto de hoje é uma contribuição da linda Thayná. Uma garota cheia de sonhos e que acredita na essência verdadeira do amor, não importa o tamanho da tempestade. Esperamos mais contribuições em breve!! Obrigado! <3

imagem: weheartit


Hoje eu não vou falar sobre nós - eu e você. Nem sobre o nó na minha garganta, e, muito menos, sobre o nó que se atou em nós dois - aquele que, de tão apertado, nos expeliu para longe um do outro. Pois, sim, sobre o que eu vou falar? Vou falar sobre mim e sobre o meu coração, mas vou te usar para isso. Eu devo ter licença poética para isso, certo?

Vou começar dizendo o óbvio: eu não te dei meu coração. Lá atrás, na nossa época, eu não fui a quase nenhum dos lugares para os quais você me convidou; não me lembrei de tirar fotografias; mal segurei sua mão. Eu, realmente, não te dei meu coração. Mas eu, desventurada, também não o tinha. Havia perdido o meu próprio coração em uma manobra errada, uma manobra feita antes de te conhecer. Perdi meu coração e me perdi, fiquei desorientada. A gente, quando não está amando (seja como for), perde a cor da vida. Lembra como eu estava cinza quando nos conhecemos?

Foi assim, perdida, que te encontrei. Vi primeiro o sorriso. O sorriso que você me deu era tão quente quanto aquela tarde de domingo. Quando te vi, senti meu coração - ainda que trôpego, vacilante e tímido - voltar a reagir: uns pulos aqui, uma taquicardia ali. Você também me viu. Na verdade, você me reconheceu, sua ansiedade em se aproximar me mostrou que era isso: a palpitação que eu senti, você também sentiu. Era a mim que você, despreocupadamente, estava esperando. Eu caberia certinho na sua vida, né? Sei disso. Mas, como prometi, não vim falar sobre isso.Vim falar que o espaço que tinha na sua vida, reservado para mim, não contava com o fato de que eu estava pela metade.

Eu era só um monte de fragmentos quando conheci você. Um amontoado de estilhaços, ainda sangrando, ainda ariscos, ainda despedaçados. Por isso não encaixava, você era inteiro. Tentei e, a cada tentativa, era como tentar encaixar uma peça errada em um quebra-cabeças, era como tentar colocar o lego de triângulo dentro do espaço reservado para o círculo: não encaixava e me machucava. Também te vi tentar e, consequentemente, falhar. É que se reconstruir é uma coisa que a gente faz só.

A sorte é que o tempo passa e, na passagem, cura. Hoje, meu coração está aqui de novo: livre, leve, solto. Voltou à sua função normal - que vai muito além de só bombear sangue para o meu corpo. Hoje, agora, nesse exato momento, meu coração estaria pronto para te ser entregue. Mas o amor, que é caprichoso, não funciona bem assim e tem me mostrado o erro que cometi lá atrás - o tropeço que me estilhaçou - e que, também, estava tentando cometer com você: coração não é para ser entregue.  Nem o meu, nem o seu, nem o de ninguém. O amor, sim, esse a gente dá sem medo. Mas o coração tem que ficar, para gerar amor para mim também. Foi por isso que eu não te entreguei meu coração.

com amor, 
Ane Karoline

"E essa agonia não passa, pois até respirar me lembra você..."


Penso em você
Será que ainda pensa em mim?
A nossa história realmente chegou ao fim?

Noite solitária
Perguntas sem respostas
Mente quebrada
Feridas expostas

É ruim chorar
É doloroso esquecer
É difícil não lembrar
É cansativo viver

É difícil chamar outra pessoa de amor
É ruim se sentir insuficiente
É difícil ficar sem teu calor
É ruim nos ver em todo lugar que olhar

Às vezes me sinto sem inspiração
Às vezes parece que ouço as batidas do seu coração
Me sinto um louco
Seu sorriso ainda me faz um bobo

As vezes lembro de nós
Noites longas, e esse é o nosso fim
As vezes parece que ouço sua voz
Parece que se foi e nem ligou pra mim

As vezes precisamos escrever
Não para lembrar
Mas sim para esquecer

-Anônimo

"Antes eu do que a dor que é amar você..."

Futilidades diárias

Naquele banco eu jurava que estava sozinha.
Mas tinha quatro pessoas sentadas ali.
Três brincando de ser meus amigos do meu lado.
E outro fingindo ser meu namorado.
Era um banco de madeira numa noite qualquer.
Quanto tempo requer para se tornar invisível?
Acho isso inadmissível.
Fingir ser meu amigo, e depois me tornar intangível.
Tapar os ouvidos para o que eu falo,
Escutar somente o colega do lado.
Mas veja bem, até ver os gatos órfãos caminhar,
Era melhor que aquele tanto de gente a falar.
Assuntos fúteis não me interessam mais.
O tempo perdido nunca volta atrás.
Gente vazia não me satisfaz.

Um brinde à vida

De pedacinho em pedacinho,
Como chuva em um moinho.
Como um ninho e um passarinho.
Como o mar e um barquinho.
Como as roupas do vizinho.
Como um homem e seu vinho.
Como andar devagarinho.
Como viver sozinho.
Acabando a rima, o hábito fica.
Nada disso morre se eu morrer.
Meus vestidos vão vender.
Lembranças desaparecer.
Poderão me esquecer.
Mas tudo continua a acontecer.
Sempre terá alguém para fazer,
O que um dia eu não fiz.
E alguma criança com um giz.
Desenhando um chafariz.
Ou pintando um nariz.
Infância feliz.
Ou uma adolescente infeliz.
Bancando a atriz.
Num papel de meretriz.
Assim ela diz.
Ou alguém fixando sua raiz.
Querendo ser aprendiz.
Mas ainda passando verniz.
O nome dela é Beatriz.                        

Eterna dor

Aquela dor que dói só de lembrar.
Aquela dor que se vê no olhar.
Aquela dor que me faz chorar.
Aquela dor de se ausentar.
Aquela dor de resmungar.
Aquela dor de praguejar.
Aquela dor que causa saudade,
Independente da idade.
Aquela dor.
Aquela que vem abraçada com a morte nos funerais,
Que causa espanto aos demais.
Que trás abraços de falsidade,  disfarçados de caridade.
Aquela dor.
Aquela de chorar sentado,
Olhando para o telhado,
Com a bíblia ao lado,
Ajoelhando no chão, uma oração.
Que situação.
Ela sempre virá sorrateiramente,
Enganando muita gente,
Que verdadeiramente,
Acredita ser imortal.
Que coisa banal.
Aquela dor.
Disfarçada de um parente distante.
Que futrica sua estante.
Que acha sua vida entediante,
Que vai embora num rompante.
Depois de comer toda sua comida,
beber toda sua bebida,
E depois de uma dormida.
A grande acolhida.
Nada a declarar.
Tudo que contei um dia já me fez chorar.

A. Oliveira(Anônimo)


Não tinha certeza do que estava fazendo. Parecia uma solução eficaz e acessível. Porém, as notícias e tragédias envolvidas com essa facilidade me deixavam apreensivo com os possíveis acidentes e a sensação de superioridade. Ainda assim, eu não tinha escolha. Eu precisava ser superior aos que se achavam superiores a mim, justamente por terem tomado a decisão que eu hesitava em tomar. Não queria ser inócuo. Por fim, resolvi. Comprei a arma, mesmo sendo a mais simples. O nome eu não sabia, não o quis ouvir. O quanto menos eu soubesse, melhor.



Há quanto tempo não lhe escrevia uma carta,  nem me lembro quando foi a última vez. Lembro que certa vez, nós discutimos, e eu queimei todas as suas cartas mas, ainda assim, hoje achei algumas bem escondidas, dentro de uma gaveta em que guardo algumas recordações como cartas de amigos e álbuns de fotos. Ah, falando nisso, tem uma foto nossa perto daquele lago que fomos, com alguns amigos nossos: você me segurava no colo e a foto ficou muito bonita, por sinal, parecíamos um casal em lua de mel... Que bobagem, né? Você nem deve se lembrar.



Alice, uma jovem de 21 anos, inteligente, animada, tímida – na maioria das vezes. Era determinada e, ainda assim, medrosa. Para simplificar, é possível dizer que é um poço de controvérsias e, assim como si mesma, a vida também a era. O mundo, desde que é mundo, sempre tivera essa surpreender capacidade de se transformar rapidamente. Daquela vez, não seria diferente: em meros, insignificantes e terríveis, três minutos, o momento mais importante de sua vida lhe fora apresentado. Um momento que conseguiu ser mais importante que sua graduação e que sua primeira pronuncia em uma língua que um dia dedicou a aprender. O tal acontecimento, talvez, só não seria maior que seu maior e verdadeiro amor.

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Eu sempre tive um problema danado com sangue. Sempre uma agonia, um medo misturado com nojo e pavor. Horror até ao meu próprio sangue. Era quase um pânico o que esse tal cheiro de ferro sempre me causou. Acabei aceitando meu título: a menina que tem medo de sangue. Era um título charmoso, até, tipo a menina que roubava livros - só que sem nenhuma aventura. Era exatamente isso: não existe aventura nenhuma em ter medo, sobretudo medo de sangue. Por isso, nunca aprendi a subir em árvores: imagina se eu caio? 

Eu não corria. Quando sentia a vontade de correr, adrenalina correndo nas veias, me controlava pensando: se eu cair, sangra. Era sempre assim, uma tormenta de mesmice: não brinco de pique, não jogo vôlei, não ando de bicicleta e não me arrisco com objetos cortantes. As pessoas levavam com impaciência, no começo: que frescura sem cabimento. Depois, pararam de levar, pararam de me chamar, pararam de me acompanhar, pararam de me levar para qualquer lugar. Quando eu ia, era correria, pai; mãe; tia; todo mundo evitando berreiro desnecessário e desmaio; todo mundo estancando um sangue que, nem sequer, corria. Cheguei em um ponto que não sabia mais se, realmente, tinha medo. Não arriscava para saber, nem queria ver. Sei que não poderia ser mais difícil e sem noção: eu, mulher, portadora de útero fértil, ovulante, não saber lidar com sangue. Uma hora, pensava, uma hora eu lido com isso, agora não.

Eu me transformei em uma metáfora: criei medo de me ferir, mesmo que por dentro. Ecoava  em minha cabeça esse medo, de tal forma, que sozinha comecei a caminhar: não posso arriscar, não vou, não quero, não posso arriscar, não posso me machucar, não. Pisando baixo, cautelosa, fui vivendo, aliás, vim vivendo até aqui. O aqui virou um tempo presente no qual eu não queria compor com ninguém, queria andar sozinha, por medo de me machucar. De tanto medo de arriscar, de tantas experiências perdidas, comecei a repensar e, então, cheguei no hoje. Hoje, uma noite de sexta-feira 13, com uma Lua linda que dá para ser vista da janela da minha cozinha. Já mais calma, mais corajosa, distraída olhando a Lua, me cortei fazendo um suco de laranja. O enjoo veio: a boca do estômago revirada, mas segurei e achei ridículo. Ridículo: duas décadas com medo de sangue, para me cortar em uma sexta-feira tão banal, sozinha, sem ninguém para fazer um curativo ou me dizer para respirar pela boca. E foi assim que percebi que esse corte era fruto de uma nova versão de mim que veio chegando sem que eu percebesse: uma versão de mim que não quer mais caminhar sozinha por medo de se machucar, por medo de errar.

Enjoada, mas enebriada, me obriguei a perceber que aquelas gotas de O-, que escorriam de mim, não me causaram dano algum, estavam, na verdade, me mostrando que quando a gente vive, é isso que acontece mesmo: a gente se derrama para se renovar. Quando a gente arrisca, acaba sendo, de alguma forma, afetado. Arriscar é se transformar. 

Especialmente para os colaboradores da Semana do Grito por Escrito. 
com muito amor, 
Ane Karoline





Querida amiga, 

Dia desses, li vagamente sobre a teoria dos efeitos e das causas, o que me fez divagar sobre coisas da vida. Lembrei de uma conversa que tive com uma amiga há uns anos e me peguei pensando que o que ela havia me dito, naquele dia, faz realmente sentido. Talvez, uma pessoa confiante demais, segura demais, madura demais, promissora demais, pode tornar-se assustadora demais. É que, na maioria das vezes, alguém inteiro dificilmente está à procura de alguém para completar-se, mas quer alguém que o acrescente. 

E qual seria a solução? Esvaziar-se? Diminuir-se? Se contentar em ser menos? Não. Se tem algo que posso te dizer é: se recuse a ser menos que você mesma. Repita para si aquela história de que "entre nós dois, eu escolho amar a mim". A vida é muito curta e passa muito rápido para vivermos sem amor próprio; e somos muito leves para não amarmos a nós mesmos. Acho que só quando aprendi a me amar de verdade consegui me livrar de tudo o que não era saudável: pessoas, tarefas e lugares. No início, minha razão chamou essa atitude de egoísmo. Hoje, sei que se chama amor próprio. Não é para ser fria, é para ser cuidadosa. Às vezes, é melhor engolir o seu coração e se amar por dentro. 

Só permita entrar quem for do seu tamanho, já passamos da fase de diminuir para caber em alguém. Repito: não é para ser fria, é para ser cuidadosa.

Com carinho, de alguém que se ama demais para aceitar amores de menos.

Hellen Leite


Caro forasteiro,

Um sentimento melancólico. Senti isso por sua causa. Logo por você, que sempre me alertava sobre os perigos da melancolia e a abominava com todas as tuas forças.  Achei que a força não existia mais em mim, se existisse não a encontrava.  Queria encontrar algo que me fizesse acreditar que a força habitava em mim. Lembrei-me de que era você quem me ajudava a encontrar tudo aquilo quanto buscava, desde o simples ato de encontrar livros na biblioteca pública até palavras para completar meus pensamentos.

Lembra-te da esperança de que tanto me falavas? Foi então que a busquei sozinha no último verão quando resolvi te deixar em espírito, mesmo meu corpo continuando ali em convívio constante com o seu. A decisão de abandonar-te foi tomada muito depois de você já ter feito isso.

Não demorou muito, obviamente, para nos distanciarmos de todas as formas possíveis e, de uma maneira estranha, percebi que a independência que tanto era falada nos meus textos havia permanecido apenas em palavras e tornei-me totalmente dependente de ti. Senti-me inútil. Tornei-me dependente de alguém que não pertence ao lugar onde se encontra. Lidar com outra rotina foi como os primeiros passos de uma criança, só que dessa vez sem ninguém para se apoiar e nem ajudar. As palavras também tornaram a nascer, como se fossem as primeiras da vida, quando não se sabia nem gritar. Foram descobertas atrás de descobertas, até aprender que sempre tive a melhor companhia, uma companhia ímpar, só não a havia descoberto ainda.

Depois de muito tempo percebi que não fiquei sozinha. Nunca estive. Sempre tive a minha companhia. Pode parecer egoísta, mas não trocarei mais minha companhia pela de ninguém, me sinto ótima, me sinto melhor do que nunca me senti em toda minha vida. Lembrei-me que os ímpares existem, e aprendi que os pares nem sempre dão certo. A sua falta me trouxe a melhor presença que já pude ter, a minha. E se um dia sentir vontade, escreva uma carta para mim, mas não envie só por saudade, ou porque gastou o seu precioso tempo fazendo-a. Envie somente se for com amor, mas principalmente se for o amor próprio. Pois dele estou transbordando.

E que nesse barco o amor-próprio possa afogá-lo.

Abraços.



                                                                                               Julyana Alves


Essa carta não é o meu manual de instruções, e nem uma lista de recomendações pra você que ainda vai chegar. Essa carta é, na verdade, um tributo à minha utopia e, apesar de ser pra você que vai chegar, espero que não a leia e, mesmo assim, a tenha impressa em você.

Eu sonho viver uma grande história com você, uma daquelas histórias empolgantes que inspire e que seja carregada de verdade e completude. Uma história bem temperada, na medida, não pra agradar ninguém mas pra nutrir o mundo, o nosso mundo, com sabor de eternidade.

Como não é uma carta de recomendações, não quero dizer o que você deve ou não ser- apenas quero que seja e me deixe ser também. Ser tudo o que a nossa existência construiu para que fôssemos, e sendo, transformando o mundo - mesmo que em uma escala muito pequenininha . Digo isso porque acredito que não estamos aqui por acaso, sinto que nossa existência finita colore o infinito eternamente e, sendo assim, que nossas cores sejam intensas perpetuando nossa história que será linda.

Sobre essa nossa grande história, não tenho a medida e nem quero ter porque o nosso critério precisa ser o amor e o amor não se contém, não é verdade? Eu disse que não faria recomendações e acho que isso soou como uma exigência, e é! Para ser sincera, tenho ainda mais duas, e que nem são, de fato, necessárias se tivermos o amor como critério e se for amor de verdade; mas vamos lá: nosso amor não pode ser egoísta e precisa ser corajoso.  Eu decidi há um tempo que não aceito nada que seja egoísta e da mesma forma luto para também não ser, penso que o egoísmo é um veneno muito perigoso que acaba com a gente, mata nosso jardim e contamina nossas relações até que morram também. Então nada de egoísmo, combinado? Agora, sobre a coragem, olha como é gostosa essa palavra: CORAGEM! Não abro mão, essa é uma virtude que precisamos cultivar senão a gente não consegue viver, porque viver é muito desafiador e quanto mais coragem a gente tem, mais a gente vive direito. Eu quero viver direito e, apelando um pouco pro meu romantismo, eu quero viver direito com você, tudo o que tivermos direito!


Por fim, desculpe minhas pretensões, mas já estou sendo e quero que seja também.  

Érica Rodrigues

reprodução/internet


Era uma manhã ensolarada de domingo, mesa do café da manhã posta e linda - café feito com muito carinho pela minha mãe - e pássaros cantarolando no jardim. Minha mãe veio até meu quarto, abriu as cortinas e me chamou para o café da manhã, e assim, também, o fez com Maria, minha irmã mais nova. Enquanto meu pai, como de costume, sentado à mesa, lia seu jornal. Estávamos nos preparando para o almoço em comemoração às Bodas de Ouro dos meu avós.

Após o café da manhã, entre brincadeiras e risadas, minha mãe pediu para que eu e Maria fôssemos nos aprontar. E meu pai, levantando-se da mesa, sentou-se em sua poltrona e manuseava folha por folha do jornal. De repente, as páginas do jornal se movimentaram com um vento que acionava todas as páginas do jornal: minha mãe e Maria que se moviam de um lado para o outro. Minha mãe arrumando a cozinha, passando roupa, etc. Minha irmã questionando o que usar. Observando toda aquela movimentação, perguntei ao meu pai:
- Pai, não vai se aprontar?
- Estou esperando sua mãe terminar de passar minha camisa - disse meu pai
- Mas, pai, por que o senhor mesmo não faz isso? - perguntei
- Isso é coisa de mulher, João. Assim que sua mãe terminar, eu irei me vestir. Vá terminar de se arrumar - disse meu pai com a voz brava
-  Tudo bem então, mas hein pai, o senhor sabe onde coloquei meu tênis branco que ganhei do vovô? - repliquei
- Não. Vá até o quarto e pergunte sua mãe, ela deve saber – disse estressado com tanta pergunta
E, assim, fiz o que ele havia me ordenado.
- Mãe, a senhora sabe está aquele tênis branco que o vovô me deu?
- Filho, eu lavei ele ontem e está dentro do seu guarda-roupa, na terceira prateleira de cima pra baixo e atrás do tênis que você comprou na semana passada - expressou minha mãe
Voltei para o meu quarto, calcei meu tênis, sentei no sofá próximo ao meu pai e continuei a observar, enquanto minha irmã gritava incessantemente pela minha mãe.
- Manhê, socorro! Eu não estou achando o vestido que usei no aniversário da Rafa. A senhora sabe onde está? - perguntava Maria
- Filha já estou indo, só um momento - disse mamãe
Minha mãe, saindo do quarto, parou na frente do meu pai e pediu para ele ir se vestir, pois sua camisa já estava passada. Meu pai levantou-se e foi até o quarto. Quando, de repente, o ouço chamar pela minha mãe.
- Amor, traz pra mim um copo com água, aqui dentro está muito quente. E traz aquela bermuda azul que está estendida lá fora, na área de serviço - gritava meu pai
Minha mãe, já suada de tanto andar de um lado para o outro, de fazer isso e aquilo, enfim, consegue entrar no banheiro, tomar banho e se arrumar. Ela saiu do quarto linda, radiante e super animada com o almoço que logo mais tarde iria realizar-se.

Já dentro do carro, com toda a família a caminho da casa do vovô e da vovó, minha mente barulhenta pensava em tudo aquilo que eu havia presenciado naquela manhã. É mesmo o papel da matriarca de cuidar da casa, dos filhos, lavar, passar enquanto o patriarca folheia seu jornal sentado em uma poltrona confortável? É só dela o papel de cuidar dos filhos? E eu como filho, estou disseminando essa cultura?
Então comecei a refletir, sobre mim e minhas atitudes. Eu, cego sob minhas ideologias miseráveis; com aquele papo de que lugar de mulher é na cozinha (risos), hoje tenho vergonha disso, e percebo que foi necessário para o meu crescimento como ser humano e intelectual. Há males que vêm para o bem, não é mesmo?  É errando que se aprende!

Agora, torço para que num futuro próximo, não exista mais esse negócio de “ismo” e que todos possam viver em paz, sem distinção de sexo, cor e raça. Um respeitando o outro, colocando em primeiro lugar aquele sentimento que falta muito nos dias de hoje: O AMOR!


Obs: A historinha contada acima é fictícia, mas é um relato que ocorre diariamente em vários lares brasileiros

Romário Rocha

imagem: google



Era tarde de quinta feira, perto das 18h, horário de pico na capital do país. Pessoas caminhavam apressadas rumo às suas vidas e eu apenas caminhava sob a confusão do céu de Brasília. Havia marcado com Flor perto da catedral, já que ela estava por lá . Flor é minha filha e anda metida em passeatas em prol de tudo quanto é coisa. Militante, ela se diz. A menina levanta todas as bandeiras que você imaginar e eu não posso fazer nada além de rezar pra que ela fique bem. Na verdade, eu acho é bonito esse jeito corajoso que ela tem de acreditar nas coisas e, principalmente, lutar por tudo o que acredita, porque é preciso ter muita coragem pra ter fé, e mais coragem ainda pra ir à luta.

Enquanto eu pensava e caminhava, observei aquela multidão de gente se aproximar: estavam munidos de cartazes, gritos de ordem, apitos e bandeiras. Li a palavra ideologia escrita em um cartaz, já que não sabia muito bem o que era, guardei na cabeça pra pesquisar em casa. Palavra bonita, pensei. Avistei minha menina e percebi a hora exata em que ela me reconheceu, seu rosto se iluminou na multidão. Não tivemos tempo pra falar muito, só um "Benção pai" e "Deus te abençoe minha filha" seguidos de um abraço rápido antes de ela correr de volta pra guiar a multidão, com um megafone. Na volta pra casa, peguei o celular e digitei ideologia, apareceram vários resultados mas entendi rapidamente que, em resumo, se tratava de um conjunto de ideias.

A cabeça me levou pra minha juventude: lembrei da Flor e da mãe dela. Minha menina tinha ideologias e eu tinha orgulho disso, pois ela -assim como sua mãe - me ensinou, com seu exemplo, a ser uma pessoa melhor; me ensinou a acreditar no mundo que eu vejo nos olhos dela; nos amigos dela; na sua geração - apesar de tudo. Fiquei envergonhado e feliz: envergonhado ao lembrar que na idade da Flor, aos 18, quando a gente acredita que tudo é possível, as minhas ideologias eram às avessas, não me engajei em causas nobres como ela, não estudei, não me organizei em prol de um mundo melhor. Egoísta, eu vivi grande parte da vida olhando apenas para o meu umbigo, até conhecer Rosa, a mãe de Flor. Vou te dizer, Rosa e Flor são minha redenção e a menina, graças a meu bom Deus, é uma cópia da mãe, não de mim. Até hoje eu não entendo muito bem como Rosa me quis, só agradeço aos mistérios do amor e do coração por isso. Eu vivi a vida inteira sob minhas ideologias pobres - mesmo sem saber que eram ideologias - com uma conversa fiada de que não adiantava lutar por nada, achava que o problema do outro era só do outro e cada um que cuidasse de si. Achava até que "bandido bom era bandido morto", era um grande representante da cultura machista. Hoje eu tenho vergonha disso, mas sou feliz por perceber que foi preciso viver e ver cada uma das minhas ideologias dar errado para que, no entardecer da minha história, Rosa e Flor germinassem trazendo, com seu exemplo de humanidade, amor, luz e o céu pro jardim da minha vida.

Cochilando na poltrona, ouço Flor chegar em casa. Agradeço a Deus por proteger minha menina mais um dia e peço que Rosa olhe por nós também do céu pois, pelo que vejo, Flor ainda tem muitas bandeiras a levantar, porque o mundo e o Brasil, assim como eu, precisam florescer!

Débora Kelly




Acendeu dois cigarros pra não morrer de dor. Não suportava a sensação de ódio que carregava consigo. Ela estava ansiosa pelo que nunca iria acontecer. Então, sugou a fumaça dos cigarros com força a ponto de sentir a garganta gritar. Seus olhos ardiam e ela tentava segurar toda e qualquer tosse que ousasse surgir, mas não conseguia.
Os cigarros fizeram com que seus pulmões doessem. A cada tossida, uma faca rasgando o centro do peito. “Vou explodir”, pensou. Sentia a cabeça como um balão de ar sendo soprado até o ponto exato da explosão.
Tragou outra vez.
Quis sair de casa e andar ao não destino, mas já eram duas horas da manhã do outro dia e ela morre de medo do silêncio da madrugada. Desejou, mais que tudo, estar submersa. Ela queria sentir o esforço de seus pulmões lutando contra a pressão subaquática do Lago Paranoá. No fundo, queria mesmo ser um mito, uma história contada de mãe para filha, para filho.
Tinha nojo de se relacionar sexualmente com homens, porque sentia o membro rijo do outro como uma serpente áspera, venenosa e bruta. Sobretudo odiava a imagem do caralho ereto, mas tinha grande fascínio pela frouxidão melancólica do membro flácido.
Acendeu mais um cigarro. Seu quarto cheirava a flores e ervas queimadas. Sentia-se superior aos outros, mística demais para existir.
Saiu de casa sem provocar nenhum tipo de ruído e foi direto ao encontro do seu mar, que não era salgado, mas que dava uma ardência nos olhos.
Ela sempre chorava quando em frente ao mar.
Mergulhou. Sozinha naquele mar inventado ela nadava nua, como se estivesse só. Mas não estava. Molhada, acendeu outro cigarro. Sentia que a fumaça quente do tabaco queimado aquecia a angústia que sentia por dentro. Olhou para o céu e se viu subindo, com uma aura brilhosa ao redor de seu ser.
Os olhos do observador brilhavam atrás do banco de concreto. Agachado, escondido, tinha controle de toda a movimentação que ela fazia. Ela nunca esteve tão vulnerável quanto naquela madrugada, sentada sozinha em frente ao lago, olhando o brilho do céu caindo sobre sua cabeça.
Ouviu um barulho de passos mansos vindo em sua direção. Não olhou pra trás. Desorgulhosa saiu correndo em direção ao lago e mergulhou fundo.  Não conseguiu sobreviver à asfixia do mar nem mesmo por um minuto. Mas no terceiro ela ouviu um “Ei! Não foge não!”.  Ali já não podia mais responder. O ar de seus pulmões havia acabado, assim como a angústia que carregava no peito.  Há pessoas que são mesmo insuportáveis! Havia para ela. Há para nós. O homem gritou. Quando pôde vê-lo, já não era mais humana. A morte de mar havia mudado sua vida pra sempre. No lugar das pernas, uma linda calda verdeazulada.  E foi-se para fundo daquele lago-mar. 
O homem que a observava nunca mais soube de seu paradeiro. De vez em quando ainda sê vê um brilho no Lago à noite. Mas quase nunca se sabe se.

Kiko Sena

Imagem: We heart it

Bastaram apenas alguns minutos para mudar a vida da mulher mais importante da minha vida. Na verdade, não só dela, mas de toda a família. Os sorrisos, que eram frequentes, deram lugar à uma falta de expressão no rosto.  Às vezes,  a expressão reaparece e  o que é possível notar é a tristeza em seu olhar. As reuniões em família, as saídas que lhe faziam feliz, deram lugar a tremores, dificuldade de caminhar e, até mesmo, de se levantar. 

Todas as tardes, eu a presenciava seus pequenos momentos sagrados, que agora parecem tão distantes: lendo a Bíblia, como era linda, e, ao finalzinho da tarde, indo fazer caminhada com uma de suas amigas - que hoje, infelizmente, não se encontra mais entre nós. De tudo isso,restaram dificuldades: de ler, escrever e, até mesmo, comer. Falar em escrever, um dia desses me apertou o coração ao ver-lhe treinar escrever o próprio nome. Ô, minha vozinha, como parte meu coração cada vez que a vejo ruim, com sua postura inclinada, dependendo de alguém para lhe ajudar a ficar de pé, para lhe dar um banho e alimentar-lhe. Me parte o coração saber o quanto você sofre e, mesmo assim, há pessoas ao seu redor que não têm paciência. Me parte o coração saber que, a cada minuto, a ansiedade, a confusão, a perda de memória e as dores a sufocam.

Entretanto, em meio à tanta dor e sofrimento ainda vejo a mulher mais linda desse mundo, é nesse teu sorriso que vejo que a vida tem algum significado, é nesse teu cuidado comigo que me vejo cada dia mais querendo só fazer o bem a ti, é no teu abraço que encontro conforto e a esperança de um dia te ver sorrir como antes, sem nada lhe causando sofrimento ou  alguma dor. 

Karolayne Katlen



Eu nunca fui do tipo responsável, sempre na hora, organizada, sabe?! Estereótipo típico de mulherzinha. Minha mãe sempre brigava muito comigo, dizia que eu parecia mais um moleque com essa falta de cuidado toda. "Como vai arrumar um homem com esse desmazelo todo?" - ela sempre resmungava, preocupação de toda mãe naquela época, eu acho.

Era justamente de um momentos desses que estava me lembrando agora. Minha mente se inunda outra vez em pensamentos da infância, memórias doces, como as mangas que eu subia no pé para catar naquelas, já tão distantes, tardes de verão. Dizem que sua vida passa por inteiro diante dos seus olhos nesses momentos, sempre duvidei, até hoje. Como que acordando de um sono profundo, me liberto do meu devaneio de saudade e retorno à minha linha de pensamento: como sou inadequada pra essa situação! Ainda não posso crer na possibilidade, soa estranho em minha cabeça. Ansiedade, já é uma situação tão dura de se aguentar sem seu peso, sem sua mania de revirar meu estomago de cima abaixo, de me dar calafrios. Minha mente novamente é arrastada, dessa vez não pro que foi e culminou no que sou mas no que pode vir a ser, a situação abre então um portão em mim, um portão que eu não detinha a chave nem tampouco sabia de sua existência, uma nova camada da minha personalidade - onde todos esses sentimentos se esconderam por tanto tempo? Logo eu que achava me conhecer tão bem, logo eu que um dia, admito, desejei isso( mas que garota não desejou?), mas há muito tempo não o fazia. Ao contrário do que eu pensava, esse desejo não havia morrido, havia se enterrado, debaixo de pilhas de cinismo e fingimento, se cobria mais e mais a cada ano que entrava, e eu me via mais e mais longe de um dia estar nesse lugar que agora estou. Escondido, esse astuto desejo fez para si um palácio, onde passava dias a tricotar mais e mais desejos parentes seus, que agora corriam porta afora e me tomavam de assalto.

De repente já não me sinto mais tão inadequada para a situação, me sinto estranha, como se uma luz emanasse de dentro de mim enquanto vejo a tal linha aparecer, sinto meu estômago revirar, não é só a ansiedade, rio comigo mais um vez. Os três mais longos minutos da minha vida! A euforia se torna angústia, quero que tudo acabe logo, estou exausta emocionalmente, nem feliz nem triste só quero me deitar, as lágrimas involuntariamente brotam, tarde demais pra tentar pará-las, já estou soluçando, o medo me abraça, medo de quê? Medo de não sei, medo de nada, medo de tudo, a incerteza do que será no futuro faz isso em nós. O choro se torna resignação, como se não tivesse mais em mim forças nem pra chorar. Sou preenchida por uma paz cansada, suspiro olhando pro teto, outra linha apareceu enquanto eu andava nessa montanha russa de emoções. Surpresa? Nenhuma. Em algum momento dos três minutos eu já tinha alcançado a certeza. Levanto do chão do banheiro, confiante, resoluta e de alma lavada, sem nenhum motivo. Me sentindo pronta pra encarar de frente essa nova fase, uma mulher se levanta do chão onde minutos atrás se sentou uma menina. Em três minutos minha vida toda mudada. Alguém atende do outro lado do telefone, sem introdutórios digo a primeira vez em voz alta

– Mô? Tô grávida.
Marcus Carvalho