Foto: Pinterest

Em dezembro foi a festa de aniversário de cinquenta anos da tia Verinha. Apesar da pouca idade, titia foi constatada com alguns sintomas de Alzheimer. Um mês antes de seu aniversário, tio Zeca anunciou:


 Somos oito irmãos. Cinquenta anos é uma idade muitíssimo importante. Faremos uma festa surpresa para a Vera Lúcia!


Diante da mudez dos irmãos e alguns olhares severos, provavelmente preocupados com os impactos que uma festa poderia causar na memória prejudicada de Verinha, tio Zeca deu de ombros e usou seu poder de convencimento.

 Bom, vocês é que sabem. O médico de Verinha, Dr. Paulo, é um moço muito experiente. Ele me disse que Alzheimer é uma doença degan... Degena...

 Degenerativa, Zeca! - Alguém completou impacientemente.

 Isso! Degenerativa! E os sintomas são progressivos. Se entendi bem, com o passar dos anos Verinha vai ficando pior. Sabe, se não quiserem, eu mesmo farei uma festa para a minha irmã enquanto há lucidez. Levo um bolin e canto parabéns. Verinha e eu.

Bastaram quinze minutos de chantagem emocional e todos os presentes decidiram: faremos uma festa para Verinha. De repente, a pequena sala de estar virou uma confusão de vozes femininas e masculinas que insistiam em serem pronunciadas ao mesmo tempo.

 Horas? Já pensou no horário, Zeca? Podemos fazer a festa de manhã cedo.  Sugeriu Lúcia.

 Pelo visto, a idade está mexendo com os seus neurônios, Lúcia. Nunca ouvi falar de uma festa marcada para o turno matutino. - Alfinetou Carmen, que nunca teve papas na língua.

 De tardezinha. Cinco, seis... Por aí! Hora que o Sol estiver indo embora. - decidiu, por fim, tio Zeca.

Brigadeiros pela mesa, dois pacotes de balões azuis bem distribuídos pela cozinha e um bolo coberto de glacê com duas velhinhas, cinco e zero. Era sete de dezembro. Aniversário de tia Verinha. Depois de cantarmos o clássico parabéns pra você e alguns sucessos da bossa nova, preferidos da aniversariante, os irmãos conversaram por três horas seguidas. Teve a história de quando Lúcia rasgou seu vestido de quinze anos no dia da festa; a história da primeira namorada de Zeca que quebrou o dente enquanto o beijava; a história de quando Paula quis fazer uma tatuagem e os pais não deixaram (...) Paula fez greve de fome por dois dias, disseram. De nada adiantou.

Em todas as reuniões da família, as histórias eram sempre contadas por tia Carmen. Bastava a frase "Isso me lembra um dia!" para entendermos: era a hora do show da Carmen. Todos sentávamos e ela, em pé, contava histórias repetidas.

Naquele dia, enquanto ela certificava-se que todos estavam atentos à história da tatuagem nunca feita de Paula, o olhar de tia Carmen parou em mim. Pausou a história, franziu a testa, apertou os olhos, em uma tentativa de enxergar melhor. Em seguida, convicta do que tinha visto, os expandiu. Por dois minutos me fitou, até que disse:

 Isso no seu braço... É uma tatuagem, Aninha?

Olhei para o meu braço direito, conferindo. O desenho já fazia parte da minha pele há oito meses. Tia Carmen já tinha me visto duas vezes, desde então. Eu tinha certeza. Mas, ao me deparar com o olhar surpreso, conclui que só agora ela havia reparado.

Balancei a cabeça, concordando. Tia Carmen permaneceu em silêncio, esperando uma explicação. Em pouco tempo, toda a platéia de tia Carmen estava voltada para mim. Tios, primos, bisavós e algumas amigas da tia Verinha. Cabeças viradas e olhos atentos, esperando uma continuação. Senti o meu rosto corar e tentei sair da situação:

 Ah, isso daqui...  Fingi naturalidade   Sim, uma tatuagem. É muito importante pra mim, representa força, intuiçã...

 Meu Deus, Ana!  Tia Roberta grita do outro lado, surpresa.

Meu coração pulou. Ah, minha nossa! Mais uma, pensei. Era fim de festa e eu só queria terminar de apreciar o glacê do meu pedaço de bolo.

 Sim?!  Fingi tranquilidade, abrindo um sorriso. Percebi naquele instante que sou realmente boa nisso. Escapar de situações constrangedoras.

 Você está tão diferente! Não de um jeito ruim, você sabe... Gostei da tatuagem. Gostei mesmo! O corte de cabelo te deixou mais nova.  Houve uma pausa, enquanto todos me analisavam e concordavam, impressionados  Você está mais leve!

Antes que eu pudesse agradecer, tia Carmen acrescenta:

 Mais leve e mais feliz. Foi, finalmente, pedida em casamento, querida? Conta pra gente!

Engoli em seco e anunciei:

  Na verdade, nós terminamos. Há dois meses.

Bocas se abriram e olhares perplexos congelaram em minha direção. Até mesmo das amigas de tia Verinha, que não me conheciam, apenas seguiram o fluxo e fingiram surpresa.

 Ana! Você terminou com o Felipe? Isso é sério? Aquele menino de ouro!  Tia Carmen balançou a cabeça reprovando-me.

 É, bom...  Bebi o resto do suco de abacaxi armazenado no copo em que eu segurava, para ganhar tempo  Foi o melhor a se fazer.

 Eu nunca gostei dele!  Anunciou uma voz atrás de mim. Todos olharam perplexos, incluindo eu. Era tia Verinha, que estava calada desde os parabéns  Quero dizer, se eu posso opinar: quando eu tinha a sua idade, dezenove anos, eu passei pela mesma coisa, Aninha querida. Rompi com um rapaz quando todos estavam cheios de expectativas sobre o nosso casamento. A minha família e a dele. Às vezes a gente precisa disso. Ser livre, apreciar a nossa própria companhia [...]

Tia Verinha nunca foi de conversar, mas sete de dezembro passado ela falou, falou e falou. A conclusão que eu guardei, de todo o longo discurso: se eu e todas as mulheres do mundo não quiserem casar, tudo bem.  Eu posso me ocupar viajando pelo mundo, aprendendo receitas ou comprando cactos para o jardim. Tia Verinha foi sagaz e também deixou nas entrelinhas algo que, acredito eu, todo mundo ali entendeu. Vez ou outra, uma aniversariante com início de Alzheimer é mais lúcida que trinta convidados sem diagnósticos de doenças degenerativas.

Ane Kelly Silva

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