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Sei lá quantos anos eu tinha quando eu vi, na tevê, uma cantora encher o peito para dizer: eu não escolhi a música, a música me escolheu. Na época, achei engraçado. Pensei até que música era o nome de uma pessoa, uma agente, uma produtora musical.... Por que, afinal, como é que a música, uma coisa tão abstrata - apesar de tão real - poderia escolher alguém? E se existe isso, como é que a música poderia ter escolhido aquela mulher e não me escolheu? Coisa estranha para fazer sentido na minha cabecinha de dez anos atrás. 

Ainda hoje, acordei com essa história na cabeça. Eu tenho isso com os assuntos, grudo neles. Ou eles grudam em mim, e ficam fazendo algazarra na minha mente até que eu me sente e escreva sobre eles. Não é sempre que quero e, aí, é uma guerra. Invento tudo quanto é coisa para fazer, parente longe para ligar, roupa suja para lavar, jornal para ler, para ver se o assunto desgruda. Mas é uma coisa, não sai enquanto eu não escrevo. E, geralmente, eu nem sei exatamente o que é, só sei que está lá, me aporrinhando para ser escrito. É uma voz constante em minha cabeça que vez em quando grita, vez em quando cochicha, mas está sempre lá com uma frase qualquer, dando início à jornada de um personagem que eu ainda nem conheço. E o engraçado é que eu quase me torno um personagem que, desde sei lá quando, vive nessa conversa de carregar caderninho surrado para onde vai. Foi sem nem perceber, quando vi, só sabia pensar escrevendo. Para pensar escrevia e escrevia o que pensava - inventando um pouquinho aqui, adornando ali. 

Criadora de histórias eu sempre fui, mesmo antes de saber escrever. É um negócio sem data de início porque parece que nasceu quando minha mãe me colocou no mundo, nasceu comigo e foi crescendo junto comigo. Depois as letras escritas chegaram a mim e de uns tempos para cá, eu não sei mais dizer onde começam e onde terminam as letras em mim: a escrita é maior que eu. Quando começaram a me perguntar "Que cê tanto anota?" Eu sempre respondi "Não sei". Até hoje não sei, suspeito que não saberei nunca. Mas tenho saboreado isso desde que me ensinaram a juntar as sílabas. 

Sempre foi tanta palavra, sinônimo e antônimo que eu quero usar para descrever as coisas que acabo exagerando, sempre. Agora mesmo, juntei tantas sílabas que já foram três parágrafos. Agora é rotineiro, mas antes, quando via isso levava era um susto: já escrevi tudo isso! A pergunta começou a martelar na minha cabeça: será que a escrita me escolheu?

De tantas outras perguntas que ainda tenho, essa, pelo menos, calou. Agora eu já descobri. Pensei, escrevi, li e reli. Concluí que: não. Não fui escolhida, agraciada, abençoada, e nem recebi um dom. Ninguém é. A verdade é que todo mundo sente, todo mundo tem um turbilhão de emoções dentro de si mesmo, todo mundo tem uma voz na cabeça que inventa, cria, grita e sussurra. Igualzinho todo mundo tem sangue circulando nas veias. Essa coisa que, de início, eu achei que era só minha: todo mundo tem. Eu sei, nem todo mundo escreve. Mas aí é que está o segredinho, a diferença está em como essa voz vai ser colocada para fora: se é pela música, por poemas, por bisturis, por equações, por temperos, por contas, por dança, pela sala de aula, nos palcos, ou cuidando dos filhos, isso depende de como é que a gente vê as coisas e como a nossa contribuição cabe nesse mundo. A gente pode não ser escolhido mas pode ser quase tudo o que quiser. Não fui escolhida, mas, de tanto gosto pelas palavras, me fiz escritora. Escrevo dia e noite sem nem saber se alguém, algum dia, vai me ler. Escrevo, sem saber se nas livrarias vai ter algum espaço para o meu livro, humildezinho, escrito entre quatro paredes de reboco. Mas escrevo. Minha voz é essa aqui, e se não houver espaço para ela, a gente dá uma empurradinha que cabe. 


Acho que é isso, esse texto aqui martelou na minha cabeça para que eu viesse dizer a ti, sem nem saber se vai me ler, que a gente, quando não é escolhido, tem que se escolher. A gente, mesmo quando não é ouvido, tem que caminhar - tropeçando e levantando- batendo no peito para dizer: minha voz é essa aqui, é isso aqui que eu sei fazer.

com amor, 
Ane Karoline

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