imagem: pinterest

Dona Maria Lúcia pariu duas vezes, mas criou três crianças. Duas crianças eram suas; nascidas de suas entranhas, geradas em seu ventre. A outra criança era fruto de outro ventre, de uma outra mulher que, assim como dona Maria Lúcia, tivera um romance marcante com o Luís da Cunha - pai das três crianças e de algumas outras que andavam por aí, Deus sabe onde. O filho dessa, ficou para Dona Maria Lúcia terminar de criar e apesar de serem meio- irmãos, ela não fazia distinção entre as duas meninas e o menino: onde come um, comem três. E comiam mesmo. Graças a Deus, estavam sempre alimentados - mesmo que ela não estivesse.

A mais velha das meninas, nascida de dona Maria Lúcia, era a Luciana. Ela gostava que a chamassem de Lu porque remetia à Luz e fazia com que se sentisse especial, iluminada, e não precisava dividir isso com ninguém, seu nome, apesar de que era acostumada a dividir coisas. Cresceu assim: dividindo tudo, sem saber. Não sabia que dividia porque, para ela, nada era dela - tudo era de todo mundo. Dividindo bem, todo mundo ganha um pedaço de bolo, uma peça de roupa e uma parcela de culpa. 

Letícia era uma das três amigas de Luciana, as outras duas eram: a irmã mais nova e a vizinha. As quatro tinham quatro coisas em comum: eram mulheres, eram pobres, eram fortes, eram felizes. De resto, não tinham mais nada em comum, eram opostas. Opostas que se alegravam em se ajudar- uma blusa emprestada aqui, um conselho ali, um restinho de rímel misturado com azeite,  uma noite da pipoca, um consolo, umas broncas, umas brigas e uma certeza: iam se apoiar até chegarem lá - onde quer que fosse esse lá.

O bairro era um daqueles não planejados, surgira da necessidade primeira de alguém: pertencer a algum lugar. Esse lugar, especificamente, era abarrotado de casas pequenas - com tetos baixos e gastos- envoltas em um emaranhado de fios que pendiam dos postes bambos. Dona Maria Lúcia morava sob um desses tetos baixos, do qual ela se orgulhava e não media esforços para manter tudo organizadinho: ser pobre não é ser sujo, ela dizia. Era a imagem que ela tinha de gente pobre: limpa. A vizinhança era de gente humilde, não pobre - pobre e humilde não é a mesma coisa. Era um povo assim: não deu certo hoje, amanhã vai melhorar; o governo vai mudar; alguém da família vai engajar; tudo vai se acertar. Um povo, operário, com muito em comum. As meninas, ousando e sob esforço, tiveram a chance de tomar um caminho diferente de suas mães - estudavam, levantavam bandeiras e iam para o samba no final de semana. Os meninos, incluindo o filho-enteado de Dona Lúcia, seguiam tentando entender se gostavam ou não dessa conversa de mulher atrevida, enquanto as convidavam para um cinema, matando aula, na segunda-feira à noite, quando é meia entrada para todo mundo. A segunda-feira do cinema e o samba do sábado eram quase democráticos: quase todo mundo tinha vez.

Diante dos holofotes, talvez nunca seria a vez dessa gente: gente que sabe o peso que tem os novecentos reais no bolso no quinto dia útil do mês, mas nunca carregou a leveza de comer o que quisesse no meio do mês; gente que não ganha um carro aos dezoito, mas não deixa de ganhar um bolinho com guaraná no aniversário. Versátil, essa gente que lava a própria roupa, faz o próprio café, as próprias unhas e o próprio TCC. Esperta, essa gente que corre atrás de ônibus, de oportunidades e de sonhos. E sonhar, que ainda é de graça, é que o salva essa gente forte que só tem a opção de fazer de si mesmo seu próprio salvador. 

Ane Karoline
(Quarto texto do desafio "15 dias escrevendo sobre:")

Deixe um comentário

O tempo é maior presente que podemos dar à alguém: obrigada pelo seu. As palavras são afeto derretido, que tal deixar as suas? (Caso tenha um site, para que possamos presenteá-lo com nosso tempo,divulgue-o aqui). Forte Abraço.