Nunca é suficiente. Foi o pensamento que me ocorreu hoje, depois de passar a noite escrevendo e reescrevendo a mesma frase, na tentativa de começar um texto, o melhor texto de todos os meus textos. A insuficiência ficou martelando em minha cabeça o dia todo, virou um pensamento pesado e fixo. Não era poesia, esse pensamento, era uma constatação. Constatação que, claro,  não veio do nada, sendo eu uma pessoa de pensamentos concludentes, nascidos, sempre, a partir da junção de vários fatos e fatores. O negócio começou a germinar logo de manhã, enquanto me aprontava, percebi que o espelho do quarto não era grande o suficiente. Além disso, estava meio torto, meio sujo, meio espatifado. O tal do espelho foi a fagulha causadora do incêndio. De repente, o quarto era pequeno, os livros eram poucos, a cama dura, as paredes sujas, a própria casa estava mal localizada. Um incômodo horroroso aquilo tudo gerou em mim e, assim, saí para encontrar o dia de hoje: incomodada. 

Realmente aborrecida, comecei a notar o tempo e achar que este, tampouco, me era suficiente: já acordei atrasada. Comecei logo a pensar em todos os meus atrasos; a prova que perdi há alguns anos, o começo do filme que não vi no mês passado, o atraso das contas, a demora da formatura, o mestrado que não chega nunca, o romance que não sai do terceiro capítulo e o tardamento em me sentir satisfeita: nunca é suficiente. Nunca estava saciada porque quando eu não era atrasada, era prematura. Terminava coisas antes do tempo por não estar satisfeita com elas, até para nascer, eu nasci antes. Os relacionamentos, encerrei todos antes do tempo, não satisfeita, achei que não fossem vingar. Os bolos, estraguei vários, por abrir o forno antes da hora. Foi nessa história de que nada, nunca, me é suficiente que eu saí pensando hoje de manhã.

A coisa do aborrecimento é que ele cega a gente. E eu hoje, tão ocupada em estar aborrecida, nem vi quando tropecei em uma tigela de água na porta de uma vizinha que mora a três casas de distância da minha. Era uma tigela redonda, com água limpa, que não deveria estar ali. Eu, comedida que sou, não fiz alarde, me limitei a olhar minha calça jeans molhada e constatar: já não estava boa mesmo. O minuto e meio que passei ali, olhando para a barra molhada da calça, me apareceu uma senhora toda de azul, com um cabelo grisalho molhado. A mulher já me apareceu com a mão na testa, como quem já  tivesse visto meu incidente com a tigela dela. Respirei, olhei para ela, e já fui logo falando:

- A senhora vai me desculpar mas não vi sua... Tigela de água limpa do meio do rua? Pois bem, eu não a vi e derrubei toda a sua água.

- Não é minha não.

- Ah, entendo. Então, tudo bem. - ela parecia meio avoada, resolvi sair logo.

- É dos cachorrinhos, sabe? Os de rua.

Fui catando a tigela do chão, já que ela não parecia se incomodar em fazer isso.

- Sei... Mas a senhora sabe que só isso não é suficiente, né? A gente alimenta um ou outro aqui, mas eles acabam morrendo aí, pela rua. 

Ela nem se alterou e nem pareceu surpresa.
 
- Ah, eu sei. Nada é suficiente. Imagina a gente, desse tamanhinho, fazendo alguma coisa completa. A gente não faz nada para ser a solução não, a gente faz um pedacinho só. Um pedacinho hoje, um pouquinho amanhã.  Aí, juntando tudo, depois vira uma coisa grande. Se eu fosse tentar salvar todos os cachorros abandonados, eu já tinha endoidecido. A gente, quando quer abraçar o mundo, e vê que não consegue, fica achando que não presta para nada, que nunca é suficiente. 

Saí dali olhando meus braços débeis, incapazes de abraçar o mundo todo de uma vez; as mãos raquíticas, para uma pessoa adulta, incapazes de escrever um romance best seller em seis meses. Saí dali insatisfeita, mas disposta a escrever uma página de cada vez. Nunca vai ser suficiente e é para isso que serve meu minuto seguinte: dar mais um passo. 

Ane Karoline.

(Segundo texto do desafio " 15 dias Escrevendo Sobre:")




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