(Fonte: http://notofyourbussines.tumblr.com/)


          Tudo começou no chuvisco. Tenho a impressão de que estou sempre debaixo de chuva. Ou talvez seja eu que esteja sempre com o humor nublado. Como eu dizia, aquela sensação começou com o chuvisco. Aquele tipo de agonia que nem vai embora nem se justifica, e você tem que continuar aturando até passar. Não sai com a água do banho, nem com o cochilo da tarde, e fica te perturbando de madrugada. Uma daquelas que parece um zunido no ouvido, e que você tenta até afundar a cabeça na água pra ver se passa. Mas a agonia não passa. Daí você já pode saber que é sinal de mudança séria acontecendo dentro de você.
          Mudança daquelas que te torna uma pessoa melhor, ou uma mais fria. No meu caso, era uma mudança boa. Primeiro veio o cansaço. Cansaço da inércia, da aceitação, da linearidade. Eu mal conseguia me aguentar sentada, e estava em pânico dentro da minha própria pele. Se continuasse daquele jeito eu era capaz de raspar a lateral da cabeça e furar um piercing na sobrancelha, então fui ver TV. Mas não consegui me distrair, e acabei abrindo todas as janelas da casa e observando o cachorro perseguir lagartos pelo quintal.
          Foi quando me atingiu. É sempre dolorido quando o sentimento acerta assim, não importa o quão acostumado se esteja. Bateu com tanta força que as lágrimas desceram sem eu conseguir me controlar. Chorei aquela agonia inteira, e algumas dores reminiscentes de problemas anteriores, enquanto extravasava tudo que estava podre por dentro. E, quando havia purgado tudo, com os olhos inchados e o nariz entupido, veio a segunda parte.
          Uma nova consciência, uma bondade e compaixão inata. Tinha cheiro de mel e alfazema. Uma reflexão profunda do "eu" naquele momento. Foi nostálgico e agradável, e eu senti as engrenagens girando dentro do meu cérebro durante todo o processo. Era como se os órgãos dentro do meu corpo estivessem assumindo uma nova configuração, e eu não podia clicar em "cancelar". Naquela tarde cinza e pesada, eu fiz um compromisso comigo mesmo.
          Primeiramente de parar de sobreviver e começar a viver de verdade. Então anotei numa folha de papel velha que faria uma viagem. Depois me prometi dar ao menos um sorriso verdadeiro por dia. Gastar mais tempo dentro de abraços, e jogar mais beijos para as pessoas. Ah, decidi também que ouviria mais as pessoas e ligaria menos para o que elas falassem. Também decidi me fazer de surdo para as vozes que gritam xingamentos na minha cabeça. Abaixei o volume das que querem ver o meu fim até que estivessem mudas. 
          Prometi a mim mesmo valorizar mais as pessoas ao meu redor, ser mais grato à vida que tenho e tentar aprender algo novo. Também vou gastar mais tempo com meus animais, pois eles merecem, e me ajudam mais do que percebem. Comer melhor também está em meus planos. Sair mais com os amigos, e passar mais tardes me dedicando aos meus hobbies. Fiz um compromisso comigo mesmo, de não deixar o peso da vida me esmagar. De não deixar a dor ser maior que o restante do mundo. Fiz, por que quis, e porque o universo dizia que era hora.
          Fácil não vai ser, mas, sempre joguei no nível mais difícil. Logo, tenho experiência. O resultado de tudo isso?
Me pergunte daqui há uns seis meses...
-Sorriso torto

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Acho que você deve me achar tão crítica que nem acreditaria se eu te contasse a barbaridade com a qual eu convivo. É uma barbaridade numérica, um relógio que vive fazendo um tique-taque na minha cabeça, como que para me lembrar que o tempo passa e eu não posso ficar parada - por mais que eu não saiba como me mexer. O tempo, em si, é uma barbaridade, né? Há quanto tempo a gente não se vê mesmo? Eu já nem sei mais. Também perdi as contas do tempo que a gente se via. Sem perceber, acabei parando de contar o tempo quando meu relógio quebrou.

Comecemos pelos fatos: eu tenho um relógio quebrado. Literalmente, digo, é um relógio despertador daqueles bem manuais - é preciso girar a engrenagem, que fica atrás, para ativar o alarme e dar um tapinha no sino para desativar o alarme- e é cor de rosa. Mas está quebrado, não funciona. Não me lembro mais quando foi que ele quebrou. Lembro que um dia, por uma ventania que entrou sem aviso pela janela, ele caiu da prateleira e quebrou. Nunca o consertei, não por maldade, mas por descuido. Desde então, todos os dias, quando olho para a minha prateleira, lá está o meu relógio, parado: onze e cinquenta e cinco.

Tique-taque, tique-taque na minha cabeça. Quando alguém fala daquele filme ou começa a cantarolar a tal música tema, um tique-taque desordenado na minha cabeça é ativado. Não tem mais ninguém girando a engrenagem para ativar o alarme em mim, não tem mais ninguém aqui: só eu só. E o alarme continua lá, porque a amolação de tique-taque não precisa de gente, pode ser ativada por sombras, dessas que a gente deixa na vida de alguém quando vai embora. As sombras me amolam tanto que logo percebi o relógio quebrado dentro de mim também, o problema é que não tem ninguém para dar o tapinha no sino e desligá-lo.

É um alarme bem discreto, se infiltra todo cauteloso na minha cabeça e me faz engatar em uma jornada de perder minutos pensando nos minutos que perdi. Por que foi mesmo que a gente nunca conversou sobre as coisas que nos eram importantes? Por que foi mesmo que eu acabei te falando tanto sobre a minha dor de cabeça e tão pouco sobre o quanto minha mãe gosta de skank, como você?O próprio skank, agora, virou uma das sombras que gritam o tal tique-taque. Como é que pode um tempo parado, eu presa em uma história, ainda ouvir o tempo passar? Ouço o tempo passar, como eu costumava te falar, mas ele passa lá fora. Aqui dentro, quanto mais o tempo passa, mais presa fico. Ainda ouço o tique-taque, mas os ponteiros não se movem, continuo aprisionada nas onze horas e cinquenta e cinco minutos, como meu reloginho cor-de-rosa: parada, mesmo que em movimento.

Não desisto de me movimentar, mas parece que sigo no mesmo lugar. Vez em quando parece que vou parar lá longe, longe de nothing but a song, longe do cartãozinho sem dedicatória comprado em Washington-DC, longe do tique-taque. Aí, parece que caminhei milhas, que desbravei horizontes, que o relógio funciona e marca as horas de hoje. Só que, de só que sou, outras vezes o tique-taque volta e sou obrigada a encarar o relógio quebrado na minha prateleira. Ainda, assim, em alguns outros momentos concluo que preciso parar de brincar com esse boomerang - que quanto mais longe jogo, com mais força volta - para, assim, voltar a ver o tempo passar, desemperrar meus ponteiros internos.

Tanto quanto sei que um dia o tempo vai voltar a passar normalmente, sei que não vai ser hoje, nem amanhã o dia em que vou, finalmente, me livrar dos fantasmas e consertar meu relógio. Hoje mesmo olhei e estava lá: onze e cinquenta e cinco. Já não sei mais se foi dia ou noite, não sei quando essas onze horas pararam. Não sei se me aproximava de marcar as doze horas do meio do dia ou as do final, que marcam a hora zero de um novo dia. Até hoje estou presa nesse limbo, segue o tique-taque: cheguei na hora zero da nossa história ou ainda estou no meio dela?

Ane Karoline