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Ninguém diria que tão intensa apatia já fora excesso de afeto um dia. Se parece com vidro de geléia com a tampa emperrada, um vidro esquecido no fundo de um armário empoeirado pelo qual ninguém mais procura - uns por desistência, outros por ignorarem sua existência. É com isso que se parece hoje o meu peito: um vidro gelado que guarda ainda a mesma doçura; ao passar do tempo, mais madura e petrificada, como quem descansa depois de muito ter sido desgastada.

Ainda que pareça ilusório e desconfortável lembrá-la - como quando, involuntariamente, se conversa com um parente distante que apareceu de repente - também seria quimérico negá-la: antes de ser posposta, congelada, solidificada; era dessa geleia quente e doce que eu era composta. Havia, antes, uma afabilidade quente morando dentro de mim; uma chama ininterrupta capaz de derreter obstáculos intransponíveis; transformando tudo em água, optando por contornar, ao invés de enfrentar. Em nenhuma circunstância, me disporia a destruir o que quer que fosse, havia sempre uma disposição à transformação, havia em mim uma fé na capacidade terna de tornar as coisas fluidas, harmônicas. Com um amor sempre quente, vi escorrer por entre os meus dedos, ultrajes consistentes, ofensas rígidas que, com tanto esforço, derreti para que fluíssem e fossem, por mim, engolidas, perdoadas, esquecidas. Mal sabia eu que, ainda que eu me fizesse um deleite de amor, nem a mais alta temperatura é capaz de exterminar uma chaga; o amor é fusão que só dilui, mas não transforma e nem destrói o que é sólido. Eu deveria saber que diluir temporariamente as pedras que me atiraram, para que fosse possível engoli-las, me petrificaria também.

Continuamente em erupção, eu era confiante e dona de um entusiasmo através do qual achava-me protegida, capaz de transformar pedras em mar, capaz de fazer gente pétrea amar. Cegamente, caminhei a passos largos para  um limbo de insensibilidade disfarçado de liberdade, onde pontadas de ausência se materializaram em constantes agulhadas, doses gélidas de desamor. De gota em gota, o furacão temperamental que havia em mim foi perdendo o entusiasmo, cada gota de amor que joguei no abismo se perdeu;  percebi, então, que a minha torrente abrasadora de sentimentos não é inesgotável. De tanta frieza recebida, vi que o que é gelado dói, tortura e desalenta até tornar o que era fluido em compacto e rígido - amor nenhum é capaz de fluir se a nascente é esgotada, jorrar amor no vazio é se esgotar.

Nessa combustão fria e silenciosa, fui me construindo pedra sob pedra, me fazendo sólida na solitude que é devotar-se ao vazio. De gelo em gelo, de respostas frias, noites em claro, amizades vazias e ausências inexplicadas foi que descobri que o gelo é bom para dor, é bem melhor, inclusive, que a explosão, que o anseio da resolução e do diálogo franco. O gelo é chama lenta, é corrosão compassada, vai doendo aos poucos até não doer mais e se tornar uma rocha. É certo que leva tempo, e muitas injúrias, para que a gente aprenda a se esfriar assim, a se endurecer e, como um gelo, se tornar sólido, estável, quase inabalável; mas é tempo valioso. Poucas coisas se equiparam em valor à estabilidade de congelar-se e perceber que não é por todo mundo que vale a pena se diluir, derreter. No limbo da superficialidade, é preciso tornar-se sólido para sobreviver, é preciso endurecer-se para não se perder. 

Ane Karoline

2 Comentários

  1. Gostaria de saber se o texto, maravilhoso por sinal, reflete o que a autora sente..

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  2. Oi! Que bom saber que você gostou do texto!
    Sobre o sentimento, acredito que em tudo que escrevemos há um pouco de nós; do que somos e do que fomos. :)
    Obrigada por ler, volte sempre!

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