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Dia tal, em algum mês depois do seu sumiço, ano seguinte,

          Demorei bastante para te escrever uma carta propriamente dita por muitas razões, mas a principal delas certamente foi o seu criticismo exacerbado - além disso, eu nunca sei dar nome às coisas e eu achei que uma carta minha para você merecia um título, fiquei tanto tempo pensando nisso que desisti. Pois bem, antes que você coloque muita expectativa sobre isso aqui, vou logo avisando que eu não sabia por onde começar, assim, decidi começar pelo começo. O fato é que fiquei sabendo de sua impopularidade muito tempo antes de trocarmos a primeira palavra e, por mais idiota que me parecesse alguém tão pequena e tão frágil ser tão incômoda, preferi manter a cautela: me cerquei dos meu amigos mais antigos, ouvindo tudo quanto foi opinião sobre você, ouvindo os comentários atrozes e me limitando a sorrir junto com eles, o que mais eu poderia fazer eu sinceramente não sei. Pretenciosa, era a palavra que alguém tinha usado para te descrever, e eu acreditei porque o primeiro livro sobre o qual você veio me falar foi um romance clássico do século dezoito; se estava fazendo isso por pretensão, para tentar impressionar meu lado historiadora ou por realmente gostar de romances clássicos ingleses do século dezoito, isso eu não sabia, não ainda. 

         Depois, você foi se mostrando mais aberta, apesar das mudanças abruptas de humor e de vocabulário, fui vendo você se abrir aos poucos e, sem que eu pedisse, me deu informações suficientes para que eu conseguisse perceber que você era uma desavisada maluca, não gostava de ninguém, mas também não conhecia ninguém, não fazia ideia das coisas que as pessoas falavam de você - o que já refutava a maior parte das acusações de meus amigos, mas eles sempre foram meus amigos, não era como se eu pudesse simplesmente tomar partido a seu favor e ir contra todos eles. De pouco em pouco, você foi gotejando todo esse seu sentimentalismo viscoso para cima de mim, gotejando até virar uma temporal, um vendaval muito grande para um corpo tão pequeno, uma tempestade em copo d'água. 

            Tentei te dizer isso, ou acho que tentei: você exagera, sabia? Exagera em tudo. Faz de tudo um acontecimento, uma tormenta, um sofrimento, uma perseguição, nem todo mundo está te perseguindo, nem todo mundo está sendo propositalmente cruel quando diz alguma coisa sobre você - mas você, sim, sabe ser bem cruel quando quer. Você se ofende demais, se você não é uma pessoa engraçada, qual é problema de as pessoas te dizerem isso bem na sua cara? Tá, tudo bem, existem formas e formas de dizer, mas você tem que entender que nem todo mundo teve a mesma criação que você, você se sentiria bem melhor se parasse de fazer tanto drama e relevasse essas pequenas ofensas que considera como humilhação. Tudo para você é um furacão, já reparou? Isso é pesado! Eu, com meus quarenta e poucos quilos, carreguei esse peso por muito tempo e quase sem reclamar porque eu amei você, mas nem todo mundo aguenta, seu sentimentalismo é pesado demais. As pessoas chegavam a me olhar e tenho certeza que ficavam se perguntando como eu poderia aguentar esse dilúvio que você é; um aguaceiro que vivia me afogando e choramingando com essa voz fina demais. Como? Eu também não sei, nunca tentei saber. 

         Eu só queria amar você de forma leve e descontínua, como sempre fiz com todo mundo. Queria te dar o meu amor sem que você duvidasse dele só porque eu, frequentemente, ajo de forma contraditória, você também não o faz? Mas você colocou condições fantasmas, quis me culpar pelo seu próprio desconforto, quis que eu tomasse partido de coisas que não me envolviam simplesmente porque magoavam você, quis que eu escolhesse entre questionar as atitudes dos meus amigos que sempre estiveram comigo - ainda que eles tenham me traído incontáveis vezes - por problemas pessoais seus com eles. Você quis que eu mergulhasse em águas profundas demais e eu ainda não sabia nadar. Com razão, me recusei a afundar e você se foi; agora que aprendi a nadar você não está mais aqui para me acompanhar. 


Ane Karoline -
texto do desafio de 24 textos em 24h


     

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