imagem: pinterest.com 


Mais uma vez, nada de especial: copo descartável de café na minha mão direita, o que não era lá a melhor ideia para uma pessoa canhota. Lá pelas sete e quarenta e cinco, ele se senta lentamente ao meu lado, de novo. Dessa vez, algumas gotas de água marcam os ombros de sua jaqueta jeans e ele parece meio esbaforido, meio ofegante, apesar de não estar suado. Deve ter corrido, penso. Aproximadamente, quatro minutos se passaram até que ele regularizasse a respiração e, como que para se justificar, soltasse sua frase:

- Que clima maluco, né?!  - a voz dele era tão monótona quanto o primeiro dia em que me disse isso, quatro meses antes. Olhei para ele e vi que havia muita coisa ali mais interessante que isso, havia muita coisa para ser dita, muita coisa que, apesar das minhas investidas, ele nunca havia me dito e, provavelmente, nunca me diria. 

De repente, tudo que eu queria falar estava ali, um jorro de pensamentos, frases prontas, na ponta da minha língua:

Não quero te assustar, se não te respondi quando você falou comigo sobre o clima e nem depois, quando você puxou uma conversa mencionando uma terceira pessoa e minha resposta foi tão murcha quanto uma não reposta, foi por prudência. Não é sempre assim, algumas vezes é pior: eu abro um livro ou coloco os fones de ouvido e encerro a conversa com um meio sorriso amarelado. Não vou mentir, isso acontece porque eu quero desvendar sua alma, quero conhecer seus medos, seus anseios, suas aspirações e inspirações; não quero ouvir você me dizer coisas que já sei, não quero ouvir um tudo bem quando você, claramente, não está bem. Quero pular essa parte, quero mergulhar fundo, mergulhar de cabeça; ao invés de ficar nadando no raso, ensopada de banalidades. 

Sem querer te abalar nem nada, mas é que estranhamento nenhum me causa desnudar minha alma, falar sobre o que eu sinto e sobre como o meu livro favorito me faz sentir como um cavalo novo com fogo nas patas correndo em direção ao mar. Me sinto, sim, deslocada e acometida por uma profunda tristeza sombria quando tenho que enfrentar conversas superficiais que não nos levam a lugar algum, minutos me parecem, então, horas e horas, horas enfadonhas e de um padecimento atroz. Quero pular tudo isso, dar um salto empinado e bem alto, pular esse abismo que é o vale das small talks, quero alcançar seu outro lado, o lado que não está estampado no seu sorriso inventado, o lado de verdade, o lado de dentro; quero poder tocar suas vísceras. 

Terror nenhum quero te causar, mas se pudermos agora mesmo falar sobre o que foi, durante sua infância, que causou essa cicatriz acima da sua sobrancelha direita, é isso que quero. Desejo ardentemente me inteirar sobre você e todas as quedas que te construíram, todos os erros que te fizeram chegar aqui, todas as coisas das quais você sente vergonha e todas das quais você se orgulha, mas sem te invadir, sem me apoderar de você, só quero te conhecer.

O ônibus fez mais uma parada menos de dois minutos depois, respirei fundo, olhei para ele e me limitei a sorrir. Tirei meu livro da bolsa, abri e continuei a ler o mesmo capítulo em que havia parado. 

com amor, 
Ane Karoline
- texto do desafio de 24 textos em 24h



Deixe um comentário

O tempo é maior presente que podemos dar à alguém: obrigada pelo seu. As palavras são afeto derretido, que tal deixar as suas? (Caso tenha um site, para que possamos presenteá-lo com nosso tempo,divulgue-o aqui). Forte Abraço.