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Existe uma ternura genuína dentro de mim. De vez em quando, ela passa dias e dias quietinha, calada, parece até que sumiu, que morreu, que me abandonou. Quando ela retorna, eu sinto como se fosse impossível me desvencilhar dela, como se fosse intrínseca a mim, mas quando ela não está, sinto como se nunca fosse voltar a encontra-la: sinto me oca. Já corri atrás dela, já li, reli, ouvi conselhos e palestras afim de descobrir a fórmula certa para encontrá-la, para que eu nunca tivesse que me sentir só novamente, para que eu nunca tivesse que conviver com esse vazio terrível que é achar-se sem propósito. Foi justamente de tanto correr na tentativa de encontrar essa ternura, que me afastei dela, quanto mais eu a buscava, mais perdia a ela e a mim mesma. É um processo, me diziam, o deserto vem antes do jardim florescer. Veio mesmo. O dia exato em que joguei todas as fórmulas, todas as limitações, todos os preconceitos dentro da lixeira, abri portas para que a ternura voltasse a me encontrar em forma de um menininho gorducho de cinco anos andando em uma bicicleta desenfreada que passou por cima do meu pé na porta da igreja. Ô tia, desculpa, não chora. Chorei foi mais, choramos os dois e depois tive que explicar para ele e para a mãe dele que ele não havia me ferido, havia me curado.

A ternura genuína que existe dentro de mim havia se recolhido no momento em que julguei-me capaz de entendê-la, havia se comprimido em todos os momentos em que levantei-me contra alguém em nome dela, em cada vez que achei-me conhecedora da verdade só porque um monte de gente pretensiosa me reconhecia como tal. A ternura genuína que existe dentro de mim nunca me pediu para pregar minha verdade sobre ninguém, nunca me disse que lugar de mulher é na cozinha e que homem é um ser superior. Ela nunca me instruiu a julgar as decisões de alguém sobre sua própria vida, nunca acelerou meu coração para que eu apoiasse mortes ou apedrejamentos. Ela nunca, e mesmo assim o fiz, me disse como eu deveria me vestir e nem que eu deveria recriminar quem não se vestisse como eu. A ternura que existe dentro de mim nunca colocou condições para existir, nunca me pediu para buscá-la dentro de quatro paredes olhando para as camisetas azuis e para os anjos de gesso; ela é quem me encontraria, mas não ali.

Eu não precisava ir busca-la, ela esteve o tempo todo dentro de mim, prontinha para aquecer meu coração assim que eu permitisse: seja no sorriso do bebezinho dentro do ônibus, seja ouvindo pela vigésima vez a mesma história da minha vizinha com Alzheimer, seja segurando a mão enrugada da minha mãe na rua, seja no beijo apaixonado do meu casal de amigos ou na chuva que cai e molha o chão seco. A ternura esteve comigo desde o momento do meu milagre maior, que fora a minha primeira respiração e estará comigo até o momento do meu último suspiro. Ela não me julga, não me apedreja, não coloca condições e nem me diminui: me acolhe. Descobri isso quando, com lágrimas nos olhos, decidi me desacorrentar, lá de cima, cruscificado, ele me olhou como quem diz: vá e ame.

com todo amor do mundo, 
Ane Karoline 
- texto do desafio de 24 textos em 24 horas



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