"A gente tenta preencher os corpos dessa fome de mundo, mas não existem fatos suficientes para cobrir a quantidade de espaços que se criam ao retirar de seu posto fixo uma profunda sensação. O espaço arde inicialmente, não aprendemos lá muito bem a lidar com vazios. O vento quente da cidade bate por dentro e espalha os últimos pedaços de carne que restavam. E assim, o vento frio e desaforado a céu aberto pode, enfim, entrar e derrubar, sem nenhum princípio, toda e qualquer antiga certeza. Faz-se silêncio. Acompanhado do firme barulho alvoroçado por toda a gente ao redor. Retoma-se o espaço, não como ponto preenchido, mas como firme vazio impenetrável por toda verdade controversa. Formam-se as primeiras palavras, trazidas pelo frescor das novas texturas e sensações. A palavra nova, assim como as primeiras sensações, tem um sabor tão forte que coloca as mais secas línguas a salivarem em cada pequeno pedaço de degustação. Entendido o vazio do espaço, formam-se raízes, mais firmes que qualquer velha e rasa sensação. O vento passa novamente, soprando por dentro, e enfim, há lugar para o suspiro assobiado. O tempo faz música a quem lhe reconhece."
                                                                                                                                                         Veracidade





       "Não aprendemos lá muito bem a lidar com vazios",
diz Isabella de Andrade em seu livro "Veracidade". Eu concordo e assino embaixo: vivemos querendo preenchê-los. O fazemos porque dói. Qualquer sinal de vazio, dói que é uma coisa. Mas existe, sim, coisa mais dolorida que os vazios que fazem morada nos buracos dentro de nós: a tentativa desesperada de preencher esses vazios; vãs tentativas, tentativas naufragadas de preenchimento. Impulso humano é esse de caminhar em busca da plenitude, mesmo que não se saiba que plenitude é essa, afinal. Caminha-se em busca do que nem se sabe, de um caminho certo, caminho verdadeiro, veracidade, voracidade. 

Eu, que sou voraz, quando leio um livro, engulo os livros, devoro as páginas. Com Veracidade, foi diferente: a escrita de Isabella me engoliu - cheia de doçura, mas o fez. Cada palavra colocada despretensiosamente com um cuidado todo pessoal, bordadas. Uma escrita contemporânea e atemporal, simples e complexa, que em frase curta resume um dramalhão da humanidade inteira. Jogos de repetições bem colocados, como quem sabe que na vida a gente repete passos todos os dias, mas nunca de forma igual. Escrita sensível que incentiva, empurra o ser à criação.  Isabella discute as belezas e mazelas do processo de criação do artista; o que ronda o criador e a criação.

É um livro muito simbólico. A palavra silêncio, a exemplo,  tanto aparece no texto, quanto se faz presente quando lida, silêncio que grita: silêncio é necessário para respirar. A autora consegue criar uma atmosfera de convite à reflexão, sem jamais deixar de ser leve, doce, suave. É um livro que vem de encontro, não em contraste.

Tenho lido bastante nos últimos anos, lido de tudo, lidado com tudo, e poucas coisas me tocaram como Veracidade. Eu, como ser sensível, como ser criador, como ser humano, me senti atravessada pela afabilidade das palavras que li; me lembrei de Clarice Lispector, me lembrei de mim, lembrei do meu primeiro amor e dos amores que ainda sinto, me lembrei da humanidade inteira - algumas vezes a gente sente tanto e vive tão pouco. Por fim, concluí com Isabella que inquietude é coisa de gente e que "nem todos os pontos, nem todas as vontades e nem todos os amores, precisam virar conexão".

INFORMAÇÕES SOBRE O LIVRO:

Onde comprar o livro: Mandar mensagem no email: isabelladeandrade@gmail.com 
ou na loja da Editora: http://editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=343




Sobre a autora:
Autora do livro Veracidade (Patuá, 2015), Isabella de Andrade é jornalista graduada pela Universidade de Brasília (UnB) e graduanda em Artes Cênicas no mesmo local. Trabalha atualmente como repórter de cultura do jornal Correio Braziliense e já trabalhou como arte-educadora no CCBB. Acredita firmemente no poder transformador e enriquecedor da arte na vida e no desenvolvimento de cada indivíduo. Estuda as possibilidades do jornalismo literário, da literatura, da poesia, da dramaturgia e uma possível convivência harmônica entre eles. É autora e produtora do projeto de arte e cultura www.ociclorama.com. Brasiliense apaixonada pelo céu da capital e pelo modo como as palavras nos possibilitam viver várias vidas. 

Instagram: @isabella_deandrade e @ociclorama



Ane Karoline

3 Comentários

  1. "vivemos querendo preenchê-los. O fazemos porque dói. Qualquer sinal de vazio, dói que é uma coisa. Mas existe, sim, coisa mais dolorida que os vazios que fazem morada nos buracos dentro de nós: a tentativa desesperada de preencher esses vazios; vãs tentativas, tentativas naufragadas de preenchimento. Impulso humano é esse de caminhar em busca da plenitude, mesmo que não se saiba que plenitude é essa, afinal. Caminha-se em busca do que nem se sabe, de um caminho certo, caminho verdadeiro, veracidade, voracidade." Muito reflexivo. Despertou a minha curiosidade em ler, gosto de livros assim, que nos fazem refletir, perante as coisas da vida.

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  2. Oi Ane.

    Achei bem interessante o livro e uma grande surpresa, pois não conhecia.Pela sua resenha a escrita de Isabella parecer ser reflexiva e cheia de doçura. Despertou minha curiosidade e vou adicionar na minha lista de desejados.

    Bjos

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  3. Desde que vi a capa desse livro, muito me interessei, achei linda e gosto das obras da Patuá, achei muito bacana você trazer o trabalho da autora para o blog, diferenciando substancialmente de outros que apenas mostram livros comerciais e de entretenimento. fico feliz por conhecer e apreciar seu blog. 'Qualquer sinal de vazio, dói que é uma coisa. ' concordo e nossa sociedade doente lida com remédios, ao invés de enfrentar seus problemas existenciais, remédios não preenche vazios.

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O tempo é maior presente que podemos dar à alguém: obrigada pelo seu. As palavras são afeto derretido, que tal deixar as suas? (Caso tenha um site, para que possamos presenteá-lo com nosso tempo,divulgue-o aqui). Forte Abraço.